Carvão ou a jornada da hipocrisia na família tradicional brasileira (Crítica)
No filme de Carolina Markowicz, "ainda se vier, noites traiçoeiras" a família tradicional se manterá
Publicado em 11 de dezembro de 2022, por Guilherme S. Machado • CríticasUm dos filmes que mereceu ser muito mais comentado em alguma subcultura cinéfila em 2022, com certeza, foi Carvão. O primeiro longa-metragem de Carolina Markowicz, pega no cerne de questões extremamente brasileiras, tendo bom humor para lidar com o bizarro, o discurso simplista e a crítica de costumes.
No filme, Irene (Maeve Jinkings) que trabalha numa carvoaria no interior, vive com sua família, seu marido Jairo (Rômulo Braga) e seu filho Jean (Jean Costa) em um cotidiano pesado, com poucos recursos e monótono. A família recebe a proposta de receber um estranho em casa — um traficante argentino procurado internacionalmente —no lugar de manter o avô que tem um tratamento paliativo de suas doenças.
Logo de cara, o filme já apresenta uma contradição nessa situação toda, que é o fato da família ser bastante católica mas pensar na morte do avô de maneira precoce e não natural. Irene pergunta ao padre se não era melhor seu pai morrer já que estava sofrendo tanto e nessa cena também é transmitido o questionamento de “o quê um cristão de interior que vive de aparências faz quando sua religiosidade não cabe em seus próprios interesses?”. E a resposta é dada logo em seguida, com as atitudes se tornando mais egoístas e centradas nos desejos próprios, mesmo que mantendo as aparências.

(Biônica Filmes/Reprodução)
As aparências deste modelo de vivência no interior são o ponto central no filme: a chegada do traficante à casa apenas expõe o que se mantinha escondido. Irene não faz sexo com o marido há muito tempo, o marido é secretamente gay e sai com o vizinho, o filho tem pouco interesse em estudar e posteriormente no filme é pego com drogas e mesmo assim todos fingem normalidade.
Carvão se destaca no cenário de filmes brasileiros incríveis de 2022 — até sendo um forte combatente na vaga que acabou sendo elegida pela ABC para Marte Um no Oscar — por vários motivos: sua dinâmica de colocar plots inimaginados durante todo o filme extrai uma curiosidade do espectador com muita facilidade; apesar do tema ser bastante denso, a direção e o roteiro reagem com bom humor à várias das situações colocadas, soltando um riso desconfortável do público; seu teor político é extremamente claro e não precisa por exemplo se apoiar em associações à grupos bolsonaristas para deixar claro de quem estão falando.
Maeve Jinkings está em uma de suas melhores atuações da carreira. A atriz não tinha muito a ver com a vivência interiorana de sua personagem e fez um exímio trabalho para não criar uma caricatura acerca da ideia de uma mulher interiorana. Sua atuação me lembrou de várias trabalhadoras que eu já vi enquanto morei em cidades do interior, não a toa ela mesma fez ensaios com mulheres criadoras de fazenda e donas de pequenas propriedades rurais. Em sua página oficial no Instagram, ela mostrou um pouco do processo de aprender a pegar galinhas e a lidar com porcos.

(Instagram/Reprodução)
Com uma direção de fotografia bastante realista, Carvão se torna um ponto fora da curva por não ser um genérico filme de observação. As contradições são interessantes, relevantes e nos deixam buscando por mais. Transitar por vários gêneros poderia ser algo que culminasse numa salada, mas que aqui funciona muito bem. Não há um grande efeito moralizante sobre as atitudes completamente questionáveis que os personagens tomam. A crítica se torna muito mais sutil devido a direção e funciona muito bem para não colocar o espectador num lugar de imbecilidade, mas sim provocando pensamentos complexos durante toda a trama.
Para os queers de plantão já aviso que a cena da moto é uma coisas mais sensuais que já tivemos no cinema brasileiro. Obrigado Carolina Markowicz. Isso se torna muito benéfico no lugar do cineasta que normalmente é mais abastado e vai falar sobre pessoas pobres. É bastante recorrente a utilização de personagens das classes mais baixas para denunciar como os mesmos sofrem. Em Carvão, há uma autonomia de personagens que chega a ser agonizante, e que no fim das contas possui um equilíbrio na falta de acesso a serviços básicos e uma perversidade que conscientemente existe neles.

(Biônica Filmes/Reprodução)
Quanto às questões de classe social, no fim das contas as situações em que eles se colocam são devido à sua posição e tentativas de melhora de vida. Essa melhora, tendo que ser obrigatoriamente escondida, vivendo sobre aparências de uma posição menor social parece ao final do filme deliberadamente proibida. Alguém como eles não pode acender. E pessoas como eles (os vizinhos) também podem guardar segredos, que ao fim dizem respeito apenas a eles mesmos e nós como espectadores somos proibidos de entrar para conferir o que há de estranho por ali. Logo, a dinâmica de aparências é concretizada.
Carvão com certeza é um dos filmes que mais bateu de frente com Marte Um durante a seleção para o Oscar por também evidenciar um tipo de brasilidade – bastante oposta. Seus métodos são muito diferentes mas suas chances também seriam muito altas depois de o filme ser ovacionado no festival de Toronto. Seria muito bom se o longa ficasse tão conhecido quanto Marte Um pois sua qualidade é exímia.

Nota: 5
