Portal Pop3

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura mostra como o fan service pode ser nocivo (Crítica)

Marvel coloca a direção de Sam Raimi a serviço de um roteiro xoxo, capenga, manco, anêmico, frágil e inconsistente

Publicado em 8 de maio de 2022, por Críticas

O conceito de multiverso é o grande fetiche desta Fase 4 da Marvel. E foi à serviço dessa proposta que a linha de produção de filmes foi extrapolada para o mundo do streaming, com a produção das séries: WandaVision, Falcão e o Soldado Invernal, Loki, What If…?, Gavião Arqueiro e, mais recentemente, Cavaleiro da Lua. Essa estratégia de experiência intermídia se mostrou extremamente bem-sucedida no período da pandemia, quando o simples ato de ir ao cinema foi impossibilitada. Mas, é claro, nem tudo são flores e esse projeto megalomaníaco começa a cobrar o seu preço em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura.

A história se inicia com a jornada de três personagens: O próprio Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), Wanda/Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), e uma nova adição ao Multiverso Cinematográfico da Marvel (MCU), America Chavez (Xochitl Gomez). É a partir dessa nova personagem, porém, que se desenvolve todo o conflito, mas aqui, já cabe uma explicação para aqueles que não assistiram WandaVision (com o mínimo possível de spoilers): durante a minissérie, Wanda acaba involuntariamente criando filhos utilizando magia do caos; sendo que, no final da produção, a personagem acaba com um livro maligno de feitiços, o Darkhold.

Descobrimos aqui nesse filme que esse livro levou nossa Feiticeira Escarlate em uma busca por seus filhos pelos diversos universos paralelos que formam o MCU, busca essa que culminou em um risco para America Chavez. Isso porque, a personagem, ainda adolescente, tem o poder de viajar entre realidades paralelas — mesmo que ainda sem conseguir controlar o seu dom. Wanda, então, utiliza-se dos feitiços do Darkhold para conjurar monstros que perseguem a garota pelas realidades paralelas, que é claro, acabam levando a personagem a chegar ao Doutor Estranho que conhecemos e pedir a sua ajuda.

(Disney/Reprodução)

De certa forma, há uma certa arrogância por parte da Marvel/Disney em presumir que todos os espectadores assistiram à série e saberão que Wanda tem uma questão com filhos imaginários, afinal, Multiverso da Loucura é totalmente incompreensível para quem não tem esse conhecimento prévio. Mas mesmo para alguém que assistiu, há um problema totalmente imperdoável de continuidade — e que talvez seja um dos principais: A passagem de Wanda Maximoff de uma heroína trágica para a antagonista que está disposta a matar criancinhas e todo tipo de atrocidade por motivos puramente egoístas se dá de forma totalmente abrupta e desconexa, já que toda a jornada da personagem em WandaVision foi construída justamente como uma história de origem em que a ela aprendia a lidar com seus traumas e a se despedir daqueles que ama — de forma a também entender seus poderes e seguir com sua vida. Desse modo, o filme usa de estratégias extremamente pedestres de roteiro para explicar essa transformação, do tipo: “Ah, mas é o livro do mal que está consumindo a mente dela!”. Argumento esse que o próprio roteiro faz questão de desconstruir na sequência final, quando outro personagem entra em contato com o mesmo objeto mágico.

A incoerência na jornada de Wanda, porém, é apenas a ponta do iceberg de um roteiro absolutamente malfeito. Há aqui um uso quase abusivo do recurso deus ex machina — expressão em latim para explicar soluções improváveis e inesperadas em um impasse —, de forma que quase qualquer conflito é resolvido na base de deslocamentos estratégicos nas linhas do tempo dos universos paralelos, algo que deixa sempre o personagem cair no lugar certo e na hora certa para resolver o problema. Usar dessa ferramenta esporadicamente é comum em Hollywood, mas no longa-metragem essa questão passa da conta. Além disso, a trilha sonora instrumental é tão, mas tão genérica, que até os momentos mais grandiosos perdem o peso.

Outro problemão que incomoda muito os não-marvetes de plantão, é o excesso de fan services completamente inúteis. Não é surpresa para ninguém que as novas aquisições mercadológicas da Disney contribuíram e muito para o hall de personagens que podem ser explorados no MCU; mais cedo ou mais tarde eles iriam aparecer, resultando no fenômeno de fancasting que decorreu em Homem Aranha: Sem Volta para Casa. A diferença é que nesse primeiro caso, houve a mínima preocupação de trazer de volta personagens que contribuam para a história e jornada do personagem principal. Aqui, porém, a Marvel agiu como uma criança mimada que têm brinquedos demais e começou a jogar personagens na nossa cara para gerar êxtase nos espectadores, para depois descartá-los. A verdade é que com o estabelecimento do multiverso, tudo que foi cuidadosamente construído até esse ponto se torna absolutamente descartável.

(Disney/Reprodução)

Um bom contraponto, porém, está nas atuações que em geral estão bem satisfatórias, com destaques para o próprio Benedict Cumberbatch ótimo como Doutor Estranho; Benedict Wong, interpretando o mago supremo Wong, e que sempre apresenta uma ótima química com Cumberbatch; Xochitl Gomez como uma excelente adição ao elenco do MCU; e porque não Elizabeth Olsen, que parece entender muito bem a carga dramática que sua personagem carrega. O maior destaque positivo em Multiverso da Loucura, porém, está na direção carregada de muita personalidade, característica de Sam Raimi, que mesmo trabalhando com um material original tão pobre, consegue imprimir sua marca explorando diferentes gêneros que vão da aventura fantástica ao terror — sempre mantendo o selo family friendly exigido pela Disney, é claro.

No geral, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura entrega uma experiência divertida para os menos apegados à ideia de coerência interna em mundos fantásticos. Ah, e os pôsteres são bem bonitos também! Mas para mim pelo menos, fica aquele gostinho amargo de quando vimos algo que poderia ser muito mais do que realmente foi.

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura
Doctor Strange in the Multiverse of Madness
2022
Sam Raimi
Michael Waldron
Disney

Nota: 2.5

Nota: 2.5

Tags: , , , ,
Gosto de música, cinema, artes em geral e de um bom pudim. Membro e pregador fiel da religião "Equilibro é tudo." Sou graduado e atualmente mestrando em Geografia.