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Marte Um: uma intensa busca por sinceridade na vivência periférica brasileira (Crítica)

Filme brasileiro dirigido por Gabriel Martins é um dos mais bonitos do ano

Publicado em 2 de setembro de 2022, por Críticas

O cinema industrial é formado por repetições: de linguagens, de temas e maneiras de contarem histórias, seja no mercado nacional ou internacional. Por aqui, no entanto, temos um grupo retratado de maneira exaustiva e muitas vezes preconceituosa e rasa: a periferia ou subúrbio. Claramente uma população alheia às elites; elites muitas vezes detentoras da produção audiovisual deste país, retratando as comunidades como ambientes tomados pelo crime, tráfico, uma sexualidade — negativa — aflorada e precoce. Dentro deste mesmo ambiente, existe uma série de temas e maneiras de se olhar essas mesmas situações, e para quem nasce fora delas o caminho mais fácil é criticá-las negativamente.

Gabriel Martins sai fora dessa curva repetitiva no cinema brasileiro para contar um ponto de vista muito próprio, que na realidade sempre esteve neste mesmo lugar, apenas foi negado pela produção cinematográfica de nosso país: o ponto de vista de quem mora na periferia, nasceu e possui a família toda preta e tenta sobreviver neste mundo tão complexo da melhor maneira possível.

No filme Marte Um, um menino negro, Deivinho (Cícero Lucas), tem o sonho de ser astrofísico enquanto vive na cidade de Contagem, em Minas Gerais, com sua família, a mãe Tercia (Rejane Faria), o pai Wellington (Carlos Francisco) e a irmã Eunice (Camila Damião). Apesar do enredo que dá nome ao filme estar centrado em Deivinho, todos os personagens têm seus momentos de destaque e fica difícil até colocá-los como coadjuvantes, pois cada um avança a cada cena e se torna mais interessante a cada atitude tomada.

A família possui estereótipos macro de famílias periféricas, mas passa muito longe da mesmice. Tercia, apesar de ser faxineira, passa por um processo de achar que está com algum mal espiritual, cercada pelas crendices deste ambiente e até recorrendo a uma benzedeira de alguma religião afro-brasileira — sem muita clareza no filme por ser uma cena rápida, mas mostra um processo de descarrego e defumação.

Já Eunice é o retrato de uma adolescente em um momento que fez os jovens se tornarem cada vez mais políticos. Ela, como menina preta, se colocou na posição de minoria que precisava se impor e bater de frente — isso sendo mostrado de maneira sutil pelo filme. Sua relação com a namorada Joana mostra um descobrimento sutil da própria sexualidade juntamente com a necessidade de aprovação da família, encontrando dificuldades no caminho. Wellington está no lugar de um pai com um trabalho braçal explorador, apaixonado por futebol, ex-alcoólatra e com sonhos que recaem sobre o filho.

(Embaúba Filmes/Reprodução)

Ao mostrarem o dia a dia desta família, o filme vai abraçando cada vez mais o espectador, seja por seu bom humor, colocando piadas leves e divertidíssimas, a participação aleatória de Tokinho como ele mesmo e patrão de uma das casas onde Tercia trabalha e uma mistura gostosa entre esse drama e a comédia. O equilíbrio entre essas duas forças coloca a produção neste patamar de quem fala de mais de um tema, ao passo em que poderia simplesmente focar nas vivências mais tristes e tensas daquele ambiente, acaba tocando em um pouco de tudo, sendo em muitos momentos agridoce.

A questão política permeia o enredo mesmo não sendo seu elemento central. A primeira cena começa com os fogos de artifício de apoiadores comemorando a vitória do presidente Jair Bolsonaro em 2018 e estes personagens ouvem notícias e veem tv à sombra dessa figura, ao mesmo passo em que as contas vão ficando mais caras e os patrões vão soltando as garras em atitudes e conversas minimamente elitistas, ainda que de maneira mais sublinhada no discurso do filme.

(Embaúba Filmes/Reprodução)

A vida de Eunice é o retrato de pessoas inconformadas com a realidade, especialmente pessoas queer como ela, que sente a necessidade de sair de casa e sofre constante represálias de uma normatividade em que essa família simples se colocou em algum momento da vida. Sua vivência ainda engloba as festinhas com músicas periféricas que dentro de um contexto elitista e conservador sofrem constante ataque e o filme não tem medo de usar a composição de Mc Carol, Heavy Baile e Tati Quebra Barraco, a Mamãe da Put*ri*.

Para o personagem Wellington ficam as reflexões da paternidade quando se tem pouco, o crescimento sendo proibido de sonhar diante de realidades muito complexas e a imposição dos próprios sonhos pressionando os filhos a seguirem os caminhos que ele deseja para afagar o ego. Ainda carrega o peso do alcoolismo e a falta de comunicação, sem que o filme possa aprofundar possíveis motivações que o levaram a esse caminho, mas representando vários pais desse país que tem uma cultura de silêncio entre relações masculinas muito forte.

Se colocando em situações muito brasileiras, como o churrasquinho na laje no aniversário de Tercia, o jogo de futebol da comunidade que pode levar Deivinho para uma carreira, as pegadinhas de televisão que não se compadecem com quem cai nelas, entre outros acontecimentos, o filme parece ter uma referência estadunidense — proposital ou não — que também quebra paradigmas quanto a representação de vidas pretas de forma bonita, independente das dificuldades apresentadas — a obra do cineasta Barry Jenkins.

Barry Jenkins e suas múltiplas formas de retratar dramas raciais. (Amazon Prime Video/United Artists/A24/Reprodução)

O diretor de Moonlight – Sob a Luz do Luar (2016), Se a Rua Beale Falasse (2018) e The Underground Railroad (2021), tem uma maneira muito característica de não transformar em circo a dor dos seus e trazer um ponto de vista empático, apaixonado e terno sob situações difíceis diante de questões raciais. Alguns dos planos e maneiras de gravar de Gabriel Martins além da própria colorização do filme são muito semelhantes à essas obras, principalmente em planos próximos ao rosto que pegam alguns trechos do tronco e nos tons azuis refletidos na pele preta durante cenas noturnas.

A trilha sonora de Daniel Simitan, já conhecido no cenário brasileiro também lembra um pouco a trilha do diretor americano, bastante evidente em todas as obras e optando pela maneira mais clássica de utilização, o que funciona perfeitamente.

Sendo assim, Marte Um é, enquanto obra brasileira, um grande marco; enquanto representação do povo preto memorável, enquanto filme periférico completo e enquanto filme, apenas aconchegante, bonito e amável. Pessoalmente, espero que leve a indicação como candidato brasileiro ao Oscar pela Academia Brasileira de Cinema neste ano de 2022.

Marte Um
Marte Um
2022
Gabriel Martins
Gabriel Martins
Embaúba Filmes

Nota: 5

Nota: 5

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Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.