Spencer humaniza Diana em uma fábula delirante e angustiante (Crítica)
Kristen Stewart põe as garras em Diana Spencer na narrativa extravagante de Pablo Larraín
Publicado em 23 de março de 2022, por Victor Hugo de Paula • Críticas, Oscar 2022A família Spencer tem suas origens prováveis com o 1º conde de Sunderland – região ao norte da Inglaterra –, Henry Spencer, que teria falecido em 1478. Isso significa que essa linhagem tem pelo menos 400 anos a mais de história que a atual família real britânica, a Casa de Windsor, que só vai receber esse nome no período da Primeira Guerra Mundial. A decisão do título Spencer para este projeto é, portanto, não só uma escolha política, mas acima de tudo uma escolha de narrativa.
Logo nos primeiros quadros do filme, a impactante e atrevida frase surge: “Uma fábula baseada em uma tragédia real”. É um resumo honesto sobre a escolha conceitual e proposta de Spencer. Não se trata de uma cinebiografia ou mesmo de uma especulação alargada de fatos reais. É uma fábula tanto no sentido “fantasioso” que a palavra transmite quanto na aura de sonho – e por que não pesadelo – que ela possibilita.
A preocupação do diretor chileno Pablo Larraín está em explorar o estado de espírito de Diana no último natal que ela passa com a família real. O evento é demonstrado a princípio como uma operação militar, com soldados fardados levando os ingredientes que se tornarão nos banquetes consumidos pelos membros da instituição. Essa tensão é quebrada com uma cena leve de Diana (Kristen Stewart) dirigindo seu próprio carro, perdida e é claro, atrasada. Esse é apenas o prólogo de três dias em que tudo é sufocante para ela, desde as formalidades e rituais sem sentido, até os pequenos gestos e olhares que colocam o espectador na pele da protagonista.

(Neon/Reprodução)
Ela tem uma ou duas falas com o esposo príncipe Charles (Jack Farthing), um diálogo brevíssimo com a rainha Elizabeth (Stella Gonet), uma relação muito afetuosa e sincera com seus dois filhos (Jack Nielen como William e Freddie Spry como Harry) e apenas uma amizade realmente relevante com uma funcionária que cuida de seus figurinos chamada Maggie (interpretada por Sally Hawkins) e que, muito provavelmente, nem mesmo existiu na vida real. Outro personagem criado para serviço da história, e que acaba por conduzir o enredo de forma indireta é o Major Alistar Gregory (Timothy Spall).
Os aspectos técnicos do filme contribuem para a criação de uma experiência visual e sonora extravagante. O trabalho de ambientação e figurino são para lá de impecáveis, com uma fotografia que opta por tornar todas as cenas meio embaçadas e envelhecidas. A trilha sonora instrumental por sua vez, tem a capacidade de preencher essa atmosfera mofada com um jazz opressor e frenético – composta pelo integrante da banda Radiohead, o excelente compositor Jonny Greenwood.
A verdade é que toda essa construção conceitual extremamente rica não teria a mesma força, se não fosse pelo trabalho de entrega completa e absoluta de Kristen Stewart. Sou totalmente incapaz de omitir o quanto admiro o papéis dessa atriz, e que acompanho com atenção a sua sequência de trabalhos incríveis que vão desde filmes totalmente comerciais em que a atriz está claramente se divertindo – como em American Ultra (2015), As Panteras (2019) e Alguém Avisa? (2020) –, até filmes profundos e contemplativos que exigem o máximo de sua capacidade de atuação – sendo bons exemplos os frutos de sua parceria com Olivier Assayas: Acima das Nuvens (2014) e Personal Shooper (2016). Em Spencer, Kristen leva sua capacidade de comprometimento até as últimas consequências e desaparece na medida em que se funde com sua personagem.

(Neon/Reprodução)
Sua atuação possibilita momentos que o espectador se esqueça completamente que tem uma atriz na sua frente e veja apenas Diana. É uma atuação altruísta e generosa, que permite não apenas uma narrativa de desconstrução da figura pública, mas também a sua transformação em algo novo. Lady Diana precisa morrer para que Diana Spencer ressurja das cinzas e Stewart se mostra capaz de sustentar toda essa trajetória, conduzindo o público de forma envolvente a um ato final, que inclusive justifica o uso da palavra “fábula”. Todos nós sabemos como essa história termina, mas por meio da visão de Larraín, é possível imaginar que talvez, quem sabe, ela tenha ao menos encontrado sua felicidade.
Apesar de ser de longe a atuação mais premiada em toda a temporada de prêmios da crítica, não é de se surpreender o péssimo desempenho que Spencer obteve nas premiações dos sindicatos, e muito menos no BAFTA – o “Oscar britânico”, definido por uma academia que conta com a presidência do filho de Diana e representante fiel da família real, príncipe William. É um “filme divisivo” no sentido de que não são todos que comprarão a proposta de fábula e de desconstrução de uma figura pública tão conhecida e amada por toda uma geração. Na minha humilde perspectiva, porém, nada disso é capaz de diminuir o trabalho magistral de Kristen Stewart, e qualquer resultado que não seja sua vitória vai ser extremamente amargo para aquele que vos escreve.

Nota: 4
