Babilônia é um épico sobre a indústria cinematográfica que celebra seus integrantes (Crítica)
Novo longa-metragem do cineasta Damien Chazelle faz um brinde ao cinema relembrando estrelas que fracassaram durante a transição para os filmes com som sincronizado
Publicado em 19 de janeiro de 2023, por Matheus Rocha • Críticas, Oscar 2023Segundo estudiosos, o significado do nome “Babilônia” provém do grego antigo e quer dizer algo como “a porta de deus”. Nesse sentido, a cidade em si é um verdadeiro marco histórico, sendo considerada por muitos como o berço das civilizações como conhecemos atualmente. E não à toa, o cineasta Damien Chazelle, que também assina o roteiro desse épico sobre a indústria cinematográfica, possa ter escolhido esse título de forma proposital no quesito de lembrança ou referência, sobretudo porque o filme brinda a história do cinema de diversas maneiras, mas com um olhar genuíno a quem, de alguma maneira, faz parte dela.
Quem está acostumado a frequentar sets de filmagens, sabe muito bem que as coisas podem dar muito errado. Seja por conta de um barulho colossal que atrapalhou a captação do som direto, da luz que deixou o elenco totalmente suado e borrou a maquiagem, daquela atriz ou ator que esqueceu o texto ou a marcação bem no momento em que todos os outros estavam alinhados, da câmera que perde a bateria, daquela que não tem mais espaço de armazenamento e enfim. O cinema não é uma arte tão simples quanto parece. Ao contrário do que até mesmo o marketing de Babilônia (Babylon, no original) vende, é importante frisar: o glamour prometido nessa indústria é restrito para poucos.
Inclusive, é interessante notar isso quando o longa-metragem inicia-se em uma sequência de muitos momentos verdadeiramente nojentos. Da evacuação de um grandioso elefante, passando pelo fetiche de urinar em seu parceiro sexual e culminando no uso excessivo de drogas, ainda não passamos nem pelos dez primeiros minutos. Na trama, inúmeros personagens se encontram em um único local: uma grandiosa festa exclusiva para as estrelas da Hollywood ainda em ascensão. É possível encontrar-se com atores, atrizes, roteiristas, músicos, jornalistas e também alpinistas sociais. Aos poucos, o público vai conhecendo cada uma dessas personalidades.
Nesse sentido, o interesse inicial do roteiro está em expor algumas relações entre peças importantes desse jogo. A primeira delas é Manuel Torres (Diego Calva), posteriormente chamado de Manny, que trabalha como um dos seguranças nessa festa. Apesar de parecer tímido, ele possui uma grande determinação dentro de si e muita vontade de pertencer a aquele universo da forma que ele acredita que merece. É ele, por exemplo, quem soluciona alguns pequenos incidentes naquela noite regada a música alta e nenhum pudor. Também é ele o responsável, indiretamente, por fazer Nellie LaRoy (Margot Robbie) acontecer. Aqui abro um parênteses para dizer que, mais do que nunca, a interpretação de Robbie é uma das mais apaixonantes de sua carreira e, dessa forma, não é difícil se deparar com os olhos de Manny brilhando a todo instante em que a visualiza — seja no início, no meio ou no final do filme.
Outra figura bastante interessante nesse início é Jack Conrad (vivido por Brad Pitt em uma caracterização à lá Marlon Brando). Na pele de um ator veterano e bastante respeitado dentro do cinema, Conrad troca de amante/esposa como quem troca de roupa. Inclusive, ele é introduzido às ações do filme justamente quando está acabando com seu casamento; ele pensa que não tem nada a perder, afinal, é uma grande estrela. Ao final dessa festa, o saldo da noite é extremamente positivo para (quase) todos eles: Conrad vai filmar um épico no dia seguinte e só precisa descansar, Manny é o incumbido a levá-lo para casa em segurança e, por esse motivo, é convidado a visitar o set de filmagem, um local onde todos os sonhos e a mágica acontece. Por fim, Nellie LaRoy também é escalada para um dos filmes que estarão sendo rodados no dia seguinte e, mesmo sendo uma caipira pobretona, encara essa como a sua grande oportunidade de ascensão.
E depois de um êxtase completo, chegamos aos momentos metalinguísticos. É impressionante até esse ponto — e em muitos outros que viriam a seguir — como Chazelle tem grande domínio de toda a ação que pretende construir. Além do mais, a montagem só favorece suas escolhas anteriores, refletindo em como sua unidade criativa conseguiu identificar tudo aquilo que era de fato importante para suas sequências.

(Paramount Pictures/Reprodução)
Na festa, há diversos planos sequências com um milhão de pessoas em quadro, muita ação, muito frenesi, muitos diálogos e muitas resoluções. O mesmo ocorre quando todos os personagens querem fazer os filmes acontecerem. Considero essa passagem de início de algumas dessas figuras, sobretudo Nellie e Manny, pela primeira vez em um set de filmagens, como algo marcante e épico. Com grande ritmo e muita ação, é quase como se o espectador perdesse o fôlego diante de tudo o que está sendo mostrado. Além disso, não há dúvidas que diversos cineastas da linhagem clássica como Howard Hawks, Orson Welles e John Ford ficariam orgulhosos desse domínio de ação, seja no primeiro plano ou na profundidade de campo — que funciona por diversos instantes sem parecer forçado ou exagerado.
Uma nota curiosa é que estamos em 1923 e há menções ligeiramente engraçadas para a sujeira literal do cinema pré-sincronizado e também figuras icônicas como a do assistente de direção, que sempre sofre para que uma produção consiga andar. Há até mesmo menções às pioneiras do cinema, que por muitas vezes foram ocultadas de sua história. Quando Nellie vai filmar seu tão aguardado projeto que requer muitas lágrimas e expressões imponentes, vemos uma mulher na direção honrando o legado profundo de Alice Guy-Blaché, Carmen Santos, Lois Weber e tantas outras. Portanto, o grande mérito de Babilônia está, primeiramente, na direção concisa e decidida de seu realizador, que potencializa todos os discursos do roteiro com grande domínio e precisão., junto de um reconhecimento verdadeiro e referencial do que já passou. Entre tantas passagens criativas e ousadas, é preciso citar as inúmeras repetições exigidas pelo cinema com som sincronizado, pois ali criou-se uma nova pessoa para estar no set: o diretor de som.
Chazelle utiliza planos excessivamente repetitivos com forma de endossar seu carinho pelos profissionais por trás das câmeras, que podem, de maneira literal, morrer pela sétima arte. Seus enquadramentos estão em uma decupagem mais convencional, mas que é muito inventiva, e que se dão forma a remeter suas referências, como Cantando na Chuva (1952), talvez a principal delas. Aliás, colocando esses dois filmes em perspectiva, em Babilônia, há momentos de extrema violência para cima daqueles que fizeram história por algumas décadas e foram de grande importância para a evolução do cinema. Uma cena triste e decisiva, por exemplo, ocorre quando Conrad conversa com a colunista Elinor St. John (Jean Smart). Apesar do texto enfático, o que corrói mesmo são as expressões de Smart que funcionam como uma pistola prestes a disparar um tiro em seu interlocutor. A vida não foi fácil para quem não conseguiria se encaixar nessa nova era e o destino de cada um deles é exibido nos mínimos detalhes.
Se há alguma falha neste filme, é preciso citar o personagem de Tobey Maguire. Chazelle falhou em seu desenvolvimento e a performance do ator parece não convencer com seu estilo, caracterização e até mesmo expressões. Contudo, sua participação é recheada de tensão e mostra como esse é verdadeiramente um projeto épico. Mesmo com um roteiro impactante e uma direção cuidadosa com muito controle criativo aliados a uma trilha sonora fascinante, impecável, bem orquestrada e, quase totalmente diegética — que convida tudo aquilo que já era grandioso a ficar ainda maior —, Babilônia ainda assim será divisivo. E isso irá ocorrer por inúmeros motivos, entre eles sua falta de pudores, seu discurso e até mesmo sua duração; esse não é um filme que todos irão amar.
Mas aqueles que já apreciaram outras obras de Damien Chazelle notarão que seus principais elementos estão todos ali: o jazz (por meio de Jovan Adepo como Sidney Palmer), o sonho pelas artes (com Manny, LaRoy e Conrad), a tragédia final (sem spoilers aqui). Enfim, é como visualizar seus sonhos desmoronarem diante de seus olhos que Manny assiste um dos filmes que entraram para a história do cinema. Emocionado, não há muito o que fazer além de se lembrar que um dia podemos ser grandes e no outro podemos acabar em uma pequena nota de falecimento recheada ironia no rodapé do jornal.

Nota: 4.5
