Running Up That Hill: o trato de Kate Bush com Deus e sua consagração em 2022
No topo das paradas do Reino Unido, A Deal With God (nome original de Running Up That Hill) é um novo clássico para a música, mesmo sido lançado 37 anos atrás
Publicado em 24 de junho de 2022, por Matheus Soares • PROMO SAMPLE - A História de uma Música“O mundo está doido”
Bush, Kate – 22 de junho de 2022
Até poucos meses, anos ou décadas atrás, ser um artista marcado por uma canção poderia ser o pior pesadelo que ele enfrentaria. One Hit Wonder é um título que todos correm ao precisar lançar um single após um smash hit que dominou o mundo. E existem casos em que, mesmo um artista lançando diversos singles de sucesso, uma canção específica será a maior da carreira e que as pessoas se lembraram.
Um exemplo recente de uma música que ganhou sobrevida foi “All I Want For Christmas Is You” de Mariah Carey, canção de 1994. A faixa foi um grande hit natalino do mundo nos anos 90, principalmente nos Estados Unidos e Japão, e começou a demonstrar sinais de fenômeno na segunda metade da década de 2010. A cada ano, suas posições nos rankings de paradas subiam, aliados ao meme que Mariah Carey só aparecia na época de Natal.
Percebendo o grande aumento da canção nas plataformas de streamings, Mariah juntou forças com sua gravadora em 2019 e desenvolveu uma grande campanha para a canção naquele ano, com comerciais, novo videoclipe, remasterização de vídeos antigos e um gigante catálogo de produtos para o natal. Tudo isso para conseguir um talvez primeiro lugar nas paradas dos Estados Unidos e mundo. Eu, que na época morava no Japão, ajudei a mamãe Noel da música e comprei alguns itens de seu merch.
HINO! "All I Want For Christmas Is You" de Mariah Carey permaneceu na posição #1 do Spotify Global na noite de natal com INCRÍVEIS 17.2M de streams no dia 24 de dezembro.
É o recorde de música mais tocada da plataforma em um único dia. 🎄 pic.twitter.com/Do0RQSzowo
— Tracklist (@tracklist) December 25, 2020
Mesmo lançada em 1985, o gigantesco sucesso da música de Kate Bush neste primeiro semestre de 2022 é muito maior do que o que a canção conseguiu naquela época. Trinta e sete anos depois, ela chegou a alcançar o primeiro lugar no ranking global do Spotify e trouxe um feito impressionante: ser a canção no primeiro lugar do Reino Unido esta semana. Repito: TRINTA E SETE ANOS. O que deixa tudo mais interessante é que todo esse sucesso está ocorrendo enquanto a artista vive reclusa e longe dos palcos desde 2014. Imagina acordar para fazer café e descobrir que tem um pix de um milhão de reais na conta? É o que está rolando com a canção que protagoniza o PROMO SAMPLE — A História de Uma Música de hoje. Senta e leia esta pequena história do trato com Deus que Kate fez.
Os primeiros passos de Kate Bush na música
Para chegar em 1985 e o lançamento da música “Running Up That Hill (A Deal With God)”, existem sete anos desde o single debut e vinte e sete anos de vida da artista. Sabe aquelas pessoas que deram certo na vida e as pessoas costumam dizer “ela nasceu para fazer isso, é muito talento”? Kate Bush foi um desses casos.
Kate nasceu no Reino Unido em 30 de julho de 1958, duas semanas e meia antes de Madonna quase um mês antes de Michael Jackson. Sua família já era envolvida no mundo da música, sua mãe, foi uma de suas grandes influências para seu desenvolvimento artístico desde pequena. Para se ter uma noção do tamanho talento e desenvolvimento pessoal, aos 11 anos ela aprendeu a tocar piano sozinha e a partir dali aprendeu instrumentos e chegou a compor 200 canções antes mesmo de se lançar no mercado.

Reprodução/Pinterest
Ao decidir ser uma performer (cantora, dançarina e um marco na arte do século XX e XXI), Kate iniciou os planos de sua carreira gravando algumas demos e enviando para as gravadoras. Não obteve êxito, mas nem tudo estava perdido: David Gilmour, guitarrista da banda Pink Floyd e conhecido da família, “patrocinou” gravações demonstrativas, com toques profissionais, para ajudar Kate encontrar uma gravadora. Em um período em que a internet não existia, ter contrato com uma gravadora era essencial para atingir as rádios e as prateleiras com singles. As novas versões foram produzidas por Andrew Powell, e as gravações foram recebidas pelo presidente da EMI, e graças ao toque refinado de Andrew e a mão abençoada de Gilmour, as demos renderam um início feliz para Kate Bush: aos 16, ela conseguiu seu primeiro contrato com a EMI Records.
Seu talento foi reconhecido, mas precisou passar por um “laboratório” para conseguir se preparar: existiria a fama, as turnês e várias demanda de ser uma artista, especialmente ela, que soava diferente de tudo que estava ocorrendo na música naquela época. Com dois anos de preparação, entre os 18 e 19, Kate Bush estava pronta para mostrar ao mundo seu primeiro single.
O Morro dos Ventos Uivantes
O Reino Unido conheceu o single debut de Kate em 6 janeiro de 1978. “Wutheting Heights” foi uma música lançada após muita luta por parte de Kate, pois a gravadora havia escolhido outra música para o lançamento. A canção e o álbum contou com a ajuda de Andrew Powell e David Gilmour, que ficaram a frente da produção. Inspirada no livro “O Morro dos Ventos Uivantes”, a canção foi o pontapé do imenso sucesso de Kate Bush, que se tornou a primeira cantora no Reino Unido a chegar ao topo das paradas com sua própria composição.
A partir daí, Kate se tornou um fenômeno. Por ter tantas composições e um preparo para seu lançamento como artista, 1978 contou com dois álbuns lançados por ela: The Kick Inside, em fevereiro, e Lionheart, que inclui a incrível “Hammer Horror”. Em 1980, a artista se consagra com o terceiro álbum, Never for Ever, atingindo o primeiro lugar do Reino Unido. O terceiro álbum foi fundamental para seu futuro musical, pois contava com sintetizadores, que viriam a ser um instrumento importante em sua carreira.
A sequência de sucesso de Kate Bush foi quebrado em 1982, quando a maldição do 4º álbum bateu na sua porta com o álbum The Dreaming. Composto e produzido por Kate, o álbum soa muito mais “conceitual” comparado aos anteriores, embora todos os outros álbuns também tenham conceitos próprios desenvolvidos pela cantora e suas características únicas, como inspirações literárias e cinematográficas. The Dreaming não obteve bons resultados e ascendeu o alerta vermelho que toda gravadora solta em situações-problemas e o artista passa a ser pressionado ou até mesmo dispensado. No Reino Unido é comum alguns artistas serem dispensados por desempenhos fracos ou caso não tenham apelo suficiente para sustentar um próximo projeto.
O impacto da má recepção de The Dreaming resultou em Kate declinando a ideia de alugar estúdios para construir um estúdio caseiro próprio, levantado nos fundos da casa de seus pais. Essa era uma saída para obter seu espaço, tempo e uma gigantesca economia, pois estúdios de gravação costumam ser caros e, como Kate apreciava a criação “sem correria”, ter seu próprio estúdio a ajudaria.
O controle que Kate Bush possuía no desenvolvimento de seu 5º álbum fez com que o projeto levasse 18 meses totais desde a pré-produção e finalização. Até hoje alguns artistas levam muito tempo para produzir um álbum (Beyoncé que o diga), mas para a época não foi um processo tão fácil. A exaustão e a longevidade do projeto aconteceu muito pela mixagem das canções, com todos os detalhes vocais e instrumentais com uma estruturação perfeccionista. Até que ela fez um acordo… com Deus.
“A Deal with God”

A Deal With God/Reprodução
A primeira canção desenvolvida para o álbum é aquela que marcou a carreira da artista e a trouxe para o topo das paradas em 2022. Inicialmente chamada “A Deal With God”, este é o nome original para “Running Up That Hill”, mas que foi recusado pela gravadora pelo medo de soar controverso e acabar sendo recusado de tocar nas rádios.
O que torna A Deal With God tão interessante é a camada que a canção recebe na produção. Os instrumentos são refinados e diversificados, se prestar atenção cada play será uma sensação diferente, mas o vocal principal contido ali é o da primeira gravação. É como se o “vocal demo” fosse mantido propositalmente como protagonista da música.
Música e álbum prontos, era hora de lançar. Só que… a gravadora não queria “A Deal With God” como single, e queria apostar na canção “Cloudbusting”. Kate bateu o pé — e imagino que deve ter saído um “pô vei, tava gravando na minha casa, paguei quase tudo, vai ser “A Deal With God” e acabou!”. Não sabemos o nível da negociação, mas ela venceu e A Deal With God passou a se chamar oficialmente “Running Up That Hill (A Deal With God)” , sendo lançado em agosto de 1985.
O videoclipe da capa é uma extensão da letra. Embora Kate prefira que cada um tenha sua interpretação sobre a letra da música, “Running Up That Hill (A Deal With God)” fala sobre um homem e uma mulher que trocam de lugar entre eles, para sentir como é. E isso é retratado no videoclipe, com Kate protagonizando ao lado do dançarino Michael Hervieu cenas de dança contemporânea. O vídeo contém uma iluminação roxa que lembra a capa de Hounds of Love, uma dominação da cor cinza e muita interação entre a artista e o dançarino. Vai de play, confia! A canção, na época, atingiu a posição #3 nas paradas do Reino Unido, e #30 nos Estados Unidos.
Mesmo não sendo o foco do texto, preciso falar rapidamente que o álbum Hounds Of Love foi um sucesso como álbum, devolvendo à Kate um pouco de tranquilidade em relação da recepção positiva do público. É uma experiência musical divina conhecer seu álbum e suas obras. Ele é dividido em uma primeira parte mais pop, feitas para atingir seus ouvidos com maestria, mas também possui um “Side B” com músicas mais conceituais, mas tão boas quanto.
Stranger Things
É algo meio “meh” para brasileiros quando falamos que uma música foi impulsionado por uma produção audiovisual. Durante anos, as novelas nos ditavam qual seria o hit do mundo. Além do inesquecível “Te Levar Daqui”, de Charlie Brown Jr., tivemos canções como “Boladona“, de Tati Quebra Barraco, “Halo“, de Beyoncé e mais recentemente “Maniac“, de Glória Groove. Mas uma música em apenas uma cena impactar o suficiente para envolver o mundo inteiro é um fenômeno raro. Tal como “My Heart Will Go On“, de Céline Dion que impactou a música impulsionada pelo filme Titanic (1997), “Running Up That Hill” ganhou uma nova geração de ouvintes este ano, impulsionada por uma das cenas mais impactantes do seriado Stranger Things 4 da Netflix. Sem muito spoilers, assista a incrível sequência envolvendo a canção a seguir!
Embora “Running Up That Hill” já tenha atingido grande popularidade no mundo em 2012 quando uma nova versão foi apresentada nas Olimpíadas de Londres, o que ocorreu após a estreia de Stranger Things 4 foi estrondoso, inesperado e inédito. São 37 anos desde o lançamento original, mas a canção soa como nova e impressionante até para quem nunca ouviu falar na artista. Desde a adição do episódio na Netflix, a canção vem sido constantemente usada em vídeos no Tik Tok, Reels e, principalmente, consumida o suficiente para levar Kate Bush ao topo das paradas novamente.

(Spotify Charts/Reprodução)
Em 6 de junho de 2022, a canção alcançou o primeiro lugar nas principais canções do Spotify Global. Já com mais de 200 milhões de streamings, a troca de corpos narrada por Kate se tornou a canção mais popular e trouxe uma antiguidade para nosso mundo atual. Em diferentes contextos e épocas, “Running Up That Hill” passou a ser uma canção que ganhou um novo capítulo, remasterizado e abraçado por pessoas que a partir de agora conhecerão a genialidade de uma artista que marcou a música e pode voltar a qualquer momento.

(Billboard/Reprodução)
Nos Estados Unidos, até o momento, a canção ocupou a posição #4, sendo o maior número a atingir na Parada até o momento. E em 18 de junho, até o momento, Kate ocupa o primeiro lugar dos Charts do Reino Unido, estabelecendo novos recordes. O site Official Charts apontou que Kate possui a maior diferença entre singles atingindo o número 1 na história da parada, sendo o primeiro Wuthering Heights, em 78, e o número 1 atual. Além disto, é a canção que levou mais tempo para atingir o topo. Trinta e sete anos é uma vida, não é mesmo?

(Official Charts/Reprodução)
Mas o recorde mais importante e impactante de “Running Up That Hill (A Deal With God)” é que Kate Bush se tornou a artista feminina mais velha a atingir o primeiro lugar nas paradas, com 63 anos. Isso traz uma abertura para muitas artistas veteranas ignoradas propositalmente nas rádios e que não ganhavam investimentos suficientes na divulgação de seus singles. Se pararmos para analisar os últimos grandes hits de artistas que atingiram o primeiro lugar, tivemos Cher com “Believe” no fim dos anos 90 e mais recentemente Mariah Carey com “All I Want For Christmas is You”.
Se o sucesso de “Running Up That Hill (A Deal With God)” será o suficiente para trazer cantoras acima de 60 anos de volta ao topo das paradas é difícil dizer, mas a movimentação de músicas antigas nos streamings indica que uma nova era no Pop chegou: os novos velhos hits. De repente, uma canção de 1975 poderá ser a maior que qualquer canção lançada este ano. Antes de Kate, tivemos “Dreams” do Fleetwood Mac em 2020, e mais recentemente “Material Girl” de Madonna. Esta, inclusive, vem sido constantemente boicotada nas rádios do Reino Unido com seus últimos álbuns, então seria um movimento irônico suas músicas reviverem o suficiente para serem reproduzidas com exaustão, como no caso de Kate Bush.
Epílogo: o trato com Deus em 2022
Em 2014, Kate Bush teve sua última interação com o público no espetáculo “Before the Dawn”, que foi uma série de concertos em Londres, sendo a primeira num formato parecido com turnê/shows desde 1979. Um momento icônico para fãs, todos os ingressos para 22 apresentações se esgotaram rapidamente, e artistas como Björk e Arca compareceram para prestigiar o momento.
Desde então, as raras interações de Kate com seus fãs são através do seu site, quando escreve pequenas postagens com mensagens reflexivas ou conversas bobas. Antes de Stranger Things 4, a última interação da cantora com o público foi em um texto que refletia a era covid-19 no Natal de 2021.
Com o sucesso da série, Kate passou a “conversar” com o público em suas cartas por algumas vezes, sempre agradecendo os criadores da série, conhecidos como os irmãos Duffer. Ela destaca em suas cartas como a música foi usada positivamente na jornada da personagem Max e que uma nova geração está redescobrindo suas canções. Em uma das cartas, ela cita:
Quão absolutamente brilhante! É difícil entender a velocidade com que tudo isso [o sucesso da canção] está acontecendo desde o lançamento da primeira parte de Stranger Things. Tantos jovens que amam o show, descobrindo a música [Running Up That Hill] pela primeira vez.
A resposta a “Running Up That Hill” é algo que teve sua própria energia e vontade. Todos nós ficamos surpresos ao ver a faixa explodir!
LET’S DO THIS.
st4 vol 2. july 1. only on Netflix. pic.twitter.com/18lq9wxTbp— Stranger Things (@Stranger_Things) June 21, 2022
É extraordinário, é uma série tão boa e eu pensei que a música receberia alguma atenção, mas eu nunca imaginei que seria algo assim. É muito excitante, e meio chocante na verdade, o mundo está doido. […] Pessoas jovens [estão] ouvindo a música pela primeira vez e descobrindo-a, eu acho que é muito especial!
Uma das falas que considerei interessante na entrevista é quando Kate diz que “a música tem um jeito de tocas as pessoas”, e esta frase é o suficiente para finalizarmos o PROMO SAMPLE de hoje. Dentro de Stranger Things, a música é um “talismã” (nas próprias palavras de Kate) para Max, porém, após maio e junho de 2022, a canção se tornou um talismã mundial, para velhos e novos fãs, ou pessoas que ainda serão atingidas quando assistir à série em outro momento. Para quem não a conheça, Kate Bush é uma artista que traz tanto detalhe, carinho e referência em sua arte que conhecer sua discografia e filmografia é como estar em uma exposição de arte que fica cada vez mais interessante.
Antigamente, ser marcado por uma canção poderia ser um pesadelo na carreira de um artista, mas hoje é uma celebração. E a celebração de Kate é válida até demais! Principalmente para uma canção que em um momento nem era a primeira opção de lead-single da gravadora. Hoje, é uma canção que está reescrevendo a história da música.
Leia mais em PROMO SAMPLE – A História de uma Música!