Autobiografia do Vermelho — um romance em versos
Anne Carson trás para contemporaneidade um romance monstruoso, vulcânico e lírico
Publicado em 20 de abril de 2022, por João Vitor • Literatura, Um Trabalho de FicçãoEu irei sonhar com esse livro, digo em voz alta.
Pensar nele ao acordar,
antes de pegar no sono,
ao amanhecer no caminho para o trabalho,
ao entardecer no caminho de volta também,
enquanto estiver passando meu café,
enquanto estiver amarrando meus sapatos,
durante a próxima passagem que irei escrever no meu caderno,
durante a escolha da minha próxima leitura,
no momento em que eu for pensar sobre a linguagem e na construção de textos – ou melhor – fragmentos de textos que o tempo não conseguiu vencer,
no momento em que eu for pensar nas infinitas formas de um romance e suas diferentes estruturas, no que um livro pode – ou não pode – ser,
e por fim,
quando eu questionar o poder do amor,
quando eu duvidar da força da poesia,
é dele, desse livro,
que eu irei me lembrar.

(Arquivo pessoal/Reprodução)
Anne Carson, poeta, tradutora, crítica, ensaísta e professora de cultura clássica, nasceu no Canadá em 21 de junho de 1950. Sempre comentada nas listas de possíveis nomes para ganhar o Nobel de Literatura, a autora é famosa por suas traduções direto do grego, além de seus poemas e o seu romance. Conheci a autora por meio dos vídeos de booktubers estrangeiros, que enaltecem Autobiography of Red (no original), um romance em versos, reconto do mito de Gerião — monstro vermelho, e Héracles — mundialmente conhecido como Hércules.
No livro, diferente do mito, Carson mostra Héracles e Gerião em um romance adolescente na contemporaneidade, e não inimigos como no décimo trabalho de Hércules. Eles possuem um relacionamento jovem, com uma intensa paixão e suas belezas e monstruosidades. O romance abre com um quase ensaio sobre Estesícoro, poeta grego que pela primeira vez deu voz ao mito de Gerião. Nele, Carson comenta que os fragmentos que sobraram desse poema lírico, é como tivessem sido rasgados em pedaços, misturado com anotações e letras de músicas e posto tudo dentro de uma caixa. O que sair de forma aleatória dessa caixa, é o resultado dos fragmentos que sobraram do mito de Estesícoro, no qual ela se inspirou.
É quase assim que vejo o romance em versos da autora. Como se um romance em prosa comum fosse rasgado em pedacinhos minúsculos, e na hora de montar esse mosaico romântico, lírico, cheio de beleza, nasceu Autobiografia do Vermelho.

(Jornal O Rascunho/Reprodução)
Passamos por homenagens a Estesícoro e seu mito contado inusitadamente pelo ponto de vista de Gerião, à Gertrude Stein e suas autobiografias, à Emily Dickinson e um documentário sobre ela que os personagens estão produzindo com sons dos vulcões. Tudo isso revelado em um forte filme vermelho em 35mm, numa mistura de gêneros literários, onde conhecemos todas as angústias, aventuras e desventuras de um romance que chega a seu ápice em Buenos Aires, em uma espécie de triângulo amoroso.
Quando descobri que o livro seria traduzido e lançado no Brasil pela Editora 34, eu entrei em estado de euforia. Até entrei em contato com o tradutor da obra, o também poeta Ismar Tirelli Neto, para saber como foi o processo de tradução do livro — algo que não foi fácil. Fiquei obcecado por essa obra antes mesmo de lê-la. Sonhava em vermelho e nos sonhos eu cotejava a edição original sem medo de me perder no inglês.

(Wikimedia Commons/Reprodução)
Na edição brasileira, a capa vem de uma edição da gravura do livro Mundus subterraneus, de Athenasius Kircher, chamada ‘’Erupção do monte Etna em 1637’’. Já na capa original, a autora decidiu usar a uma pintura do pico Orizaba, no México, feita pelo naturalista alemão Alexander Von Humboldt (1769 – 1859), fruto de uma expedição científica.
Autobiografia do Vermelho foi o segundo livro da autora a ser publicado do Brasil (a editora Edições Jabuticaba publicou O método Albertine em 2017). No entanto, as editoras Relicário e Bazar do Tempo, irão publicar Short Talks — um livro de poemas, e Eros, o agridoce — sua dissertação para a Universidade de Princeton sobre o amor. Eu não vejo a hora de lê-los!
A autora, em 2013, lançou uma continuação de Autobiografia do Vermelho, chamada Red Doc>. Sem previsão para chegar ao Brasil.
Eu gostaria de presentear a todos com esse livro, mesmo com ciúmes. Me apaixonei por ele, queria namorá-lo, viver ao seu lado com ele na minha cabeceira.
XXXII. “Negar a existência do vermelho
é como negar a existência do mistério. A alma que assim o
fizer um dia enlouquecerá.”