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Garota, mulher, outras

Quantas autoras negras você já leu?

Publicado em 6 de abril de 2022, por Literatura, Um Trabalho de Ficção

o primeiro livro que peguei em dois mil e vinte e dois e finalizei, foi Garota, mulheres, outras, da Bernadine Evaristo
o livro abriu meus olhos de tantas formas,
um mundo cheio de pautas e narrativas se chocaram contra mim, como aquela específica onda da praia que me pegou desprevenido

eu me odiei por não ter lido antes e cravei as unhas na minha coxa
odiei também aqueles que leram e não me indicaram, mas é muito egoísmo da minha parte pensar assim

esse livro é escrito de uma forma tão linda, tão brilhante, tão maravilhosamente estruturada, é tão inventivo, beira a prosa poética
é um romance de fluxo, como a autora mesmo se referiu a ele, quase não possui pontos finais, é um texto gráfico, para apreciar, para olhar de longe e notar que são versos livres —sem métrica

versos que ligam doze protagonistas plurais numa grande teia narrada por discurso indireto livre
personagens singulares de diferentes lugares e gerações, com suas imperfeições, perfeições, alegrias, dores, vitórias e derrotas
afinal, a vida é isso, não é?

o livro é inteligente;
irônico
político
fala sobre raça;
identidade
sexualidade
a escrita é contemporânea;
fashion
camp

por que demorou tanto para esse livro chegar em minhas mãos? das quarenta autoras que li ano passado, por que apenas uma era uma autora negra? leio muito mais mulheres do que homens todos os anos, isso basta? onde estavam as autoras negras na minha graduação em Letras? onde elas estão na minha estante? a quem devo culpar?
a) a mim
b) letra C
c) letra A

desde que notei isso uma sombra de incomodo me persegue
fico tentando procurar respostas dentro de mim mesmo e ao meu redor

Toni, Chimamanda, Conceição, Zadie, Ana Maria, Octavia e Aline, todas vocês, por favor, me esperem, vou chegar um pouco atrasado, mas ainda assim quero
conhecê-las
ouvi-las
lê-las
que vocês sejam só o começo de outras
e outras
e mais outras.

(Portal Pop3/Reprodução)

No ano passado, eu li no total de 47 livros. Foi um ato inesperado para mim, eu nunca tinha lido tanto, descoberto tantos autores novos e gêneros diferentes. No entanto, quando eu estava fazendo minha lista de melhores leituras, algo me incomodou. Senti uma voz sussurrando em meu ouvindo questionando o por quê de todas essas 47 leituras, apenas uma ser de uma autora negra. Levantei abruptamente da minha cama e comecei a olhar cada livro da minha estante. Eu, formado em Letras, que sempre digo para tudo e todos que sou apaixonado por livros, não lia autoras negras. Onde elas estão na minha estante? Fiquei incomodado, me senti envergonhado e fui falar com uma amiga escritora, Aline Santos, sobre o assunto. Conversamos muito, mandei áudios e mais áudios, e até ela, que é uma mulher negra, tem dificuldades de encontrar autoras negras e contemporâneas. Quando vamos em uma livraria, por que as autoras negras não estão nos expositores centrais? Por que precisamos pesquisar e procurar para lê-las? Um dos nossos debates foi o marketing em cima dos livros dessas autoras. Por que o mercado editorial trata os autores negros (autoras, propriamente dito) como um nicho específico? Apenas leitores negros iriam se interessar pela história? Por que eu, como leitor voraz, não tinha autoras negras na minha estante? Culpo o sistema ou a mim? Eu que estava com os olhos vendados para essas autoras todo esse tempo? Quando postei no meu Instagram sobre  o assunto, recebi vários comentários interessantes. Um deles, em específico, fez muito sentido e ecoou em mim. O autor do comentário disse que no ano passado, quando leu um autor negro, sentiu algo como “dever cumprido”. Por que não sentimos isso com autores brancos? Então, quando lemos uma, apenas uma autora negra por ano, quer dizer que já fizemos a nossa parte? É isso? Esse post possui mais questionamento do que respostas.

Em 2022, decidi ler ao menos um livro de uma autora negra por mês, eu me comprometi e sigo realizando isso. Foi, e continua sendo uma descoberta, como se eu tivesse encontrado um baú do tesouro escondido e cheio de riquezas. Sei que muitas outras joias irão cair em minhas mãos ainda esse ano, e estou pronto para compartilhar com todos.

Estou lendo nesse mês de abril Americanah da Chimamanda Ngozi Adichie. Está sendo uma leitura muito fluída, quem gosta de Sally Rooney e Zadie Smith, irá gostar da escrita da autora.

(Bernadine Evaristo para a New Yorker/Reprodução)

Bernadine Evaristo ganhou o Booker Prize de 2019 com Garota, Mulher, Outras, ao lado de Margaret Atwood. Mesmo com anos de carreira e mais de 10 livros publicados, esse foi seu primeiro livro que chegou no Brasil pela Companhia das Letras. Fiquei encantado com a autora, com seu estilo narrativo, seu estilo pessoal de se vestir e se apresentar ao público. Vi e revi entrevistas dela no Youtube, e uma que mais me chamou atenção foi a de dicas de escritas que ela concedeu para o canal da British Vogue.

Eu amei cada segundo do vídeo, anotei as dicas no meu diário como se fosse o Novo Testamento. Além do livro e do poder da narrativo que a autora possui, a tradução da Camila Holdefer foi muito bem feita. Inclusive, a tradutora escreveu sobre o processo de tradução do livro no blog da editora, no qual eu indico a leitura. A capa brasileira é uma pintura de Toyin Ojih Odutola, intitulada Paris Apartment.

Pinterest/Reprodução

Espero que esse texto tenha feito pelo menos alguns de vocês se questionarem. Quanto mais delicado e vergonhoso é o assunto, mais precisamos falar sobre ele. Onde estão as autoras negras na sua estante? Na sua vida de leitor? A primeira forma de mudar toda essa situação, é começando por nós mesmos.

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Sou formado em Letras, Redator e atualmente trabalho como Assistente Editorial. Comecei a escrever sobre livros no meu Instagram, e vou trazer esses textos e recomendações de leituras na minha coluna para o site. Meus textos são mais performáticos e poéticos, uma conversa comigo mesmo que decidi compartilhar com o resto do mundo. Já posso me chamar de Carrie Bradshaw?