Minha ode à Louise Glück
Do que eu quero falar quando falo de poesia
Publicado em 4 de maio de 2022, por João Vitor • Literatura, Um Trabalho de FicçãoTodo dia eu acordava e dizia:
a poesia não foi feita para mim.
Na faculdade, não queria analisar poemas, fazer escansão e pensar sobre sílabas métricas,
não queria saber se era um soneto ou um haicai,
não queria contar estrofes, definir um monóstico, ou septilha — pelo menos não só isso.
Eu queria sentir o que todos sentem lendo poesia.
Qual é seu ponto? Sempre me questionava quando terminava de analisar um poema xerocado entregue pela professora.
Tão inocente na época, e desde quando precisa ter ponto algum?
Tentei todos os cânones da academia, tentei Dickinson, Plath, Sexton, Vuong, e nada adiantou.
Eu ainda estava em busca do meu Poeta.
Então um milagre, como no milagre das folhas de Clarice, aconteceu.
Averno.
O nome, o que ele significa literalmente e metaforicamente, me chamou atenção — os antigos romanos acreditavam que era uma passagem para o submundo.
Comprei, li, grifei, risquei, decorei poemas inteiros e os reescrevi nos meus cadernos, compartilhei fotos com amigos, vi e revi entrevistas.
Eu queria escrever como ela, me comunicar como ela, me vestir como ela, ser como ela.
Desejava uma conversa a sós, mas não para tentar entendê-la, mas me entender, entender esse meu grande fascínio.
Seus poemas servem como um oráculo particular, onde encontro respostas de perguntas que nunca nem fiz, perguntas que nem existem, mas que são sempre respondidas.
Escrevendo assim, parece tão melodramático, tão teatral.
Mas então, como explicar o que não pode ser e explicado?
Não precisa haver um ponto!
Talvez agora, nesse momento da minha vida, eu esteja vendo grandes significados em todas as coisas.
E não é isso que os leitores de poesia fazem?
Se você ainda não achou o seu Poeta, não se preocupe, ele está a sua espera e estará para sempre.
Pode levar tempo, mas lembre-se,
o tempo bate diferente para a poesia.

Obras da Louise Glück em uma livraria em Estocolmo. (Arquivo/Reprodução)
É muito difícil escrever sobre poesia. É muito subjetivo, muito pessoal. Quando escrevo sobre uma obra de ficção, tenho um enredo, ou ao menos um fio condutor que posso mostrar para o leitor do meu texto, o que encontrará na obra. Com a poesia, não. Como convencer alguém a ler um poeta, se o que eu senti lendo, o outro, pode não sentir? Por isso, o termo sinfronismo casa tão bem quando resolvemos falar sobre poesia.
Segundo o ensaísta e crítico francês, Charles Du Bos, “Cada vez que um homem frente a uma obra literária – qualquer que tenha sido a época em que foi criada – consegue emocionar-se e reviver em si os sentimentos que comoveram o autor no instante em que compôs, opera-se o efeito do sinfronismo, flui a onda maravilhosa de sintonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente a dois seres, mais além do tempo e do espaço. A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades conjuradas pela emoção”. Talvez por isso, na academia, não me identifiquei com os poemas em sala. Se conectar com uma poesia, com um poeta, é exatamente isso, é algo íntimo, seu e do autor, um sentimento impossível de ser compartilhado.
ECOS
1.
Houve um tempo em que eu podia imaginar minha alma
podia imaginar minha morte.
Quando eu imaginava minha morte
minha alma morria. Disso
me lembro claramente.Meu corpo persistia.
Não prosperava, mas persistia.
Por quê, não sei.2.
Quando eu ainda era muito pequena
meus pais se mudaram para um valezinho
rodeado de montanhas
no que chamavam terra dos lagos.
Da nossa horta
dava para ver as montanhas
cobertas de neve, mesmo no verão.Me lembro de um tipo de paz
que nunca mais encontrei.Um pouco mais tarde, tomei a decisão
de que seria artista,
para dar voz a essas impressões3.
O resto já contei a vocês.
Alguns anos de fluência, depois
o longo silêncio, feito o silêncio do vale
antes de as montanhas devolverem
sua própria voz transformada em voz da natureza.Esse silêncio é meu companheiro agora.
Pergunto: do que morreu minha alma?
e o silencio respondese a sua alma morreu, de quem e a vida
que você esta vivendo e
quando você se tornou essa pessoa?Tradução de Heloisa Jahn (Averno)

(Louise Glück/Reprodução)
Vencedora do Nobel de 2020, ‘’por sua inconfundível voz poética, que torna universal a existência individual’’, segundo a academia Sueca, Louise Elisabeth Glück, nasceu em Nova York em 22 de abril de 1943. A academia também a comparou com a poeta do século 19, Emily Dickinson, pois assemelham-se na ”severidade e relutância em aceitar princípios simples da fé”.
Antes dela, a única poeta vencedora do Nobel foi Wislawa Szymborska, em 1996, outra poeta que admiro muito.
Louise, em entrevista, disse que ficou surpresa quando ganhou o prêmio, não achou sentido um poeta branco e americano vencer. A autora não estava preparada para os efeitos que ganhar o Nobel teria em sua vida, ficou até receosa com os amigos, com medo de perde-los. Ela recebeu a ligação, avisando de sua vitória, às 7 horas da manhã, e pareceu muito surpresa e até mesmo sem saber como reagir. Logo toda a sua rua estava cheia de fotógrafos e jornalistas tentando entrevistá-la. A autora, quase que brincando, revelou que com o valor do prémio em dinheiro, iria comprar uma casa em Vermont.

(Arquivo pessoal/Reprodução)
Lançado pela Companhia das Letras em 2021, Poemas (2006 – 2014), possui três livros da autora. O primeiro deles é Averno, lançado em 2006, traduzido por Heloisa Jahn. Nesse primeiro livro da coletânea, os poemas perpassam todo o mito de Perséfone e Hades e seus desdobramentos. No segundo livro, Uma vida no interior (A village life, no original), lançado em 2009 e com tradução de Bruna Beber, os poemas contam sobre a vida em um vilarejo, seus moradores, seus costumes e a vida no campo. Já no terceiro, Noite fiel e virtuosa (Faithful and Virtuous Night, no original), lançado em 2014, com tradução de Marília Garcia, os temas são mais subjetivos. Os poemas tratam sobre solidão, contemplações, morte e melancolia. Aqui, Louise escreve poemas que são pequenas ficções, quase prosas.
Em seu novo livro publicado no Brasil no mês passado (abril de 2022), Receitas de inverno da comunidade (Winter Recipes from the Collective, no original), com outra tradução de Heloisa Jahn, possui 15 poemas, e foi o primeiro livro lançado da autora após vencer o prêmio Nobel. Logo que terminei a leitura desse novo livro, eu senti como se um compilado de temas que percorreram sua carreira de poeta, estivessem presentes. São poemas com uma beleza austera, uma melancólica interior e nostálgica. Uma urgência e ao mesmo tempo, uma timidez de contar o que está no papel.
Uma obra de ficção
Quando virei a última página, depois de muitas noites, uma onda de tristeza me envolveu. Onde estavam todas aquelas pessoas que pareciam tão reais? Para desanuviar, saí para dar uma volta na noite; instintivamente, acendi um cigarro. No escuro, o brilho do cigarro parecia um fogo aceso por um sobrevivente. Mas quem poderia ver essa luz, esse pontinho no meio de infinitas estrelas? Parei por um tempo no escuro, o cigarro uma brasa que brilhava e reduzia de tamanho, cada tragada me destruía um pouco mais. Ela era tão pequena e tão breve. Breve, bem breve, mas agora estava aqui dentro, onde as estrelas jamais poderiam estar.
Tradução de Marília Garcia (Noite fiel e virtuosa)
Vale ressaltar que as quatro (ótimas) traduções foram feitas por poetas ou tradutoras de longa data e referência no Brasil. Quem mais poderia transmitir o que um poeta quer dizer, se não, outro poeta ou alguém com imensa sensibilidade?
Em uma entrevista no Youtube para o canal Biblioteca Mário de Andrade, Heloisa Jahn (tradutora de Averno e de Receitas de inverno da comunidade), comenta como é trabalhoso traduzir poesia. Segundo ela, as vezes uma tradução literal para o Português não transmite o que o autor quer manifestar, sendo o trabalho do tradutor, ter a liberdade de mudar algumas palavras para poder transmitir o que certa frase do poema realmente quer passar. Isso exige sensibilidade, habilidade, conhecimento e domínio da linguagem.
Pensamentos noturnos
Há muito tempo eu nasci.
Já não há ninguém vivo
que se lembre de mim quando bebê.
Eu era um bebê bonzinho? Ou
difícil? A não ser na minha cabeça,
essa questão está agora
silenciada para sempre.
Que será que caracteriza
um bebê difícil, pensei. Cólica,
dizia minha mãe, o que significava
que eu chorava muito.
Que mal poderia haver
nisso? Que dura era essa coisa de
estar viva, natural
todos morrerem. E que miúda
devo ter sido, pendurada
na minha mãe, ganhando suas palmadinhas
de aprovação.
Que lástima que fiquei
verbal, desconectada
dessa memória. O amor da minha mãe!
Não demorou, emergi
no meu eu verdadeiro,
forte mas amarga,
como um despertador.Tradução de Heloisa Jahn (Receitas de inverno da comunidade)
Segundo a própria editoria em um post do Instagram: “A solidão, a exaustão, o trauma, as descobertas da juventude e as reflexões que acompanham o envelhecimento permeiam toda a obra de Louise Glück. Mistura de ensaio, ficção, mitologia, psicanálise e filosofia, seus poemas ganham forma de épicos condensados e são capazes de iluminar as fragilidades da alma humana.”
Encerro esse texto com o último verso do poema The Evening Star:
you have cast enough light
to make my thought
visible again.