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Afinal, qual é o tema de The Boys?

Série se mostra politicamente confusa para alguns espectadores

Publicado em 24 de junho de 2022, por Artigos, Séries e TV

Não é de hoje que a série The Boys vem sendo sucesso de público e crítica, até antes da estreia da 3ª temporada sendo o 2º conteúdo do Prime Video em número de acessos e tempo de visualização. A série que mostra a vida de heróis com constantes crises de marketing e egos de celebridades tocam em vários assuntos políticos concomitantemente nas temporadas. O que muitos não sabem ou podem não ter conseguido concluir ainda, com os episódios já lançados, é qual o tema da obra – que abarca tantos assuntos de uma vez que pode confundir os fãs mais fiéis.

Discurso, cinema e política

Para quem não sabe ainda, pasme: política se faz presente em basicamente todas as produções artísticas, sejam audiovisuais ou não. Tudo que é visto, mostrado, insinuado, subentendido e passa por um processo de comunicação da linguagem – e artes não são nada mais nada menos que a comunicação – contém em si um discurso político, independentemente dos anseios políticos do criador serem propositalmente adicionados ou não.

Um filme simples de “parque de diversões” como algum da Marvel ou da DC Comics possui discurso político? Sim. Quando anunciados, a produção destes filmes sempre contrata atores que farão os papéis principais visando uma mudança na forma física deste artistas. Essa forma física é remetida ao padrão de beleza greco-romano existente há séculos no nosso imaginário – e que ainda não se dissipou. Eternos (2021) por exemplo é um filme da Marvel que rejeita este mesmo padrão e coloca outro discurso em torno de seu filme, nesse caso um oposto e que faz repensar essas mesmas escolhas. Neste mesmo grupo de filmes é possível notar também uma certa simplicidade na definição de heróis e vilões; saudosismo à valores americanos de capitalismo, terrorismo e livre mercado; e também pouca complexidade nas relações humanas.

Capitão América exalta um corpo, beleza e uma bandeira genuinamente americanos (Marvel/Reprodução)

Estas são escolhas que apontam visões de mundo dos artistas ou da empresa que comanda a obra – nestes filmes, as atitudes de ambos os estúdios da Marvel e DC Comics mostram grande preocupação comercial com todas as obras de heróis, deixando bastante claro que quem comanda essas produções são 95% a empresa e a abertura para artistas colocarem seus ideais é deixada em segundo plano.

Discursos evidenciam muito qual é o local de fala dos criadores de cada obra. Local de fala, aliás sendo um termo conhecido em seu significado errôneo no meio virtual, tendo se iniciado na área acadêmica relacionado à de “de onde aquele que fala, vem”. No caso da Disney, por exemplo, esta é uma empresa que visa lucro e vem de uma criação de público bastante conservador, focado em produções familiares que agradem a todas as idades, logo seus filmes irão falar a partir de um discurso utópico e bastante higienizado da sociedade, entregando de uma vez, muito do que vários grupos hegemônicos querem.

O meio audiovisual desde a criação do Cinema na virada do século XIX para XX, desperta interesse como disseminador de discursos, tanto para empresas quanto para pessoas específicas. O formato de venda hollywoodiano que se estabelecia nos anos 1910 continha elementos discursivos que vemos até hoje, guiados por empresas com foco empreendedor: padronização de histórias, neutralização política focada em manter a classe dominante no poder, corpos, rostos e gêneros vistos na tela. Enquanto isso, cinemas de vanguarda na Europa elevavam seu discurso político em movimentos como expressionismo, impressionismo, surrealismo entre outros.

A União Soviética já nos anos 1920 tinha seu cinema todo utilizado como propaganda política, retratando um desejo de futuro de nação próspera em filmes financiados pelo governo. Cineastas independentes também focavam sua produção no pensamento acerca da montagem e da união da classe trabalhadora. Na Alemanha já na ascensão de governadores de extrema direita, o cinema foi utilizado como propaganda explícita do partido nazista, que em seus filmes retratava judeus e comunistas como desordeiros e como vilões que destruíam a raça ariana e a Alemanha por dentro enquanto os Nazistas eram organizados e fortes e poderiam reerguer o país trazendo a ele algum tipo de glória.

Utilizado como propaganda pelo partido Nazista, o cinema trazia de maneira didática narrativas simplistas para reerguerem o apoio da sociedade Alemã para seu político que era rosto do movimento em 1935: Hitler (MUBI/Reprodução)

Seja qual for o cineasta, a empresa, o período histórico ou até o apoio político e empresarial em torno de um filme, ele sempre estrará retratando uma visão de mundo e ela é política, pois se dá acerca de vivências das pessoas envolvidas na produção, e essa vivência é política.

The Boys e seu discurso político

Se tudo é político nas artes, The Boys que possui falas explicitamente políticas também deve ser. Contudo, com o alcance da série, ela atinge pessoas que têm em seu local de fala, praticamente todos os discursos políticos possíveis. E é normal que essas pessoas que se identificam de alguma forma com os personagens e se entretêm com enredo queiram “puxar o saco” para seu lado.

O fato é que The Boys é uma sátira com alto teor de exagero, nonsense e humor ácido, por isso talvez seja difícil que todos consigam vê-la da mesma forma. Mas partindo de meu ponto de vista pessoal, vejo a série como uma sátira cruel anarquista.

Seu discurso está diretamente ligado com o tema desenvolvido: Super-heróis com pouco heroísmo nas veias já que seu cérebros são altamente afetados pelo desejo de crescer e se manter no topo. Dizendo assim parece bastante simples, mas desde o primeiro episódio somos mostrados às diferentes facetas da vivência super. Enquanto a maioria dos heróis são frágeis moralmente, Luz-Estrela é uma garota do interior com sonhos e desejos puros, se mantendo dentro de um padrão de moralidade: ou seja, nem todos possuem seu compasso quebrado, mas a maior empresa controladora destes poderosos, a Vought toma atitudes com base em números, dinheiro e o que é melhor para suas ações. Ou seja, a série crítica a todo o tempo situações geradas por um capitalismo que já chega a seu limite. Mesmo assim passa longe de ser socialista ou comunista devido à repulsa por esses temas (os dois modelos de sociedade são constantemente rejeitados pelos personagens bastante americanos do programa) e por não dar soluções para os problemas apresentados em outro espectro político.

O dono da Vought se mostra como ardiloso em The Boys (Prime Video/Reprodução)

Como todos os métodos de controle de super-heróis para gerar uma sociedade mais justa que são apresentados vão falhando, a série caminha para ver a realidade de maneira anarquista, sem trazer soluções ou outras maneiras de ver o mundo, mas reiterando várias vezes que todo o ramo de personagens é falho e corruptível. E isso nos leva a 2ª camada de um discurso político: o tema.

O tema de uma série

O tema ou fio condutor de uma série está relacionado com o que ela realmente quer dizer. Para encontrar um tema é preciso pensar e formular uma ideia acerca da sinopse geral ou da storyline do projeto. Por exemplo a série Dark em sua sinopse curta/storyline podemos resumi-la como “Uma cidade é afetada por um mistério de viagem no tempo, com períodos históricos convergindo entre si e causando caos”. Porém ao colocar a série num patamar de profundidade de situações desenvolvidas até o final podemos entender o porquê de certos elementos aparecerem no decorrer do enredo. Ao final, chegamos à conclusão de que Dark é uma série sobre autoperdão e aceitação de coisas que não podem ser corrigidas. Ao final da série temos um “reset” de tudo o que havia sido construído anteriormente, então os fatos anteriores em si não importavam, mas a trajetória que faz o espectador chegar a novas conclusões. Algo parecido acontece com Mr Robot, que mesmo com uma trama política fortemente estruturada focava na libertação das personalidades secundárias de seu protagonista que consegue achar uma libertação. Assim o tema da série adquire uma nova camada que se torna menos óbvia e não pode ser notada normalmente com alguns episódios, às vezes são necessárias temporadas para isso se esclarecer.

Última cena de Mr Robot (Universal Cable Productions/Reprodução)

Temas e fios condutores são importantes para a criação de um formato e estruturação de episódios. Sem os dois bem estabelecidos a série pode ruir ou se tornar outra coisa em relação ao que se desejava inicialmente. Normalmente séries longas renovadas por capricho do Canal produtor têm seu formato alterado. Stranger Things é o maior exemplo disso, pois foi concebida como uma minissérie e ao final da 1ª temporada iríamos apenas partir para a próxima. A Netflix, entretanto, pediu logo ao aprovar o projeto que este funcionasse de maneira serializada, pois suspeitavam que as crianças seriam muito carismáticas e atrairiam público. Assim, a 1ª temporada foi alterada para os acontecimentos acontecerem progressivamente, movendo uma invasão do mundo invertido na cidade de Hawkins, que seria a primeira cena, para a 4ª/5ª temporada. O formato de roteiro se alterou de uma série de origem para um formato com base em “arcos narrativos” que se encerram e geram outro após o fim de uma temporada e aos poucos levam a essa situação de invasão.

Esses momentos importantes do arco de uma série, se bem delineados com seu tema, podem fazê-la durar por muitas temporadas, pois o roteirista sabe até onde quer chegar e caso o canal peça novas temporadas é preciso arrastar essa conclusão.

O tema de The Boys

The Boys é uma série bastante afetada pelas mudanças ocorridas na segunda década do século XXI na TV. Ela ousa falar de quase tudo, mostrar tudo e não ter papas na língua para provar seu ponto. E seu ponto parece muito claro para mim durante as 3 temporadas que estão no ar até então: o tema da série se encontra na desilusão de uma sociedade moderna de ser coerente com seu próprios desejos, suas leis e sua natureza – pois ela sempre será corrupta ou corruptível. Não foi uma conclusão óbvia, durante toda a primeira temporada acreditava que o tema da série estava relacionado com a mídia capitalista e sua forma de engolir as pessoas ao tratá-las como mercadoria. Temas são facilmente confusos assim e talvez mudem até o fim de suas séries, mas The Boys parece reiterar a narrativa de corrupção na humanidade, pelo menos em seus episódios já lançados.

O maior exemplo disso na série são os personagens minimamente bons estarem sempre enfrentando dilemas morais: Luz-Estrela (Erin Moriarty), Hughie (Jack Quaid), Rainha Maeve (Dominic McElligott), Kimiko (Karen Fukuhara), Frenchie (Tomer Kapon) e Leitinho (Laz Alonso) estão constantemente sendo submetidos a situações degradantes em prol do que acreditam: uma vida em paz com poderes ou não, sem uma empresa grande como a Vought controlando as crises dos supers. Eles, no entanto, não chegam nem perto de conseguir alterar o curso dessa sociedade cada vez mais caótica seguindo as regras. Todas as vezes que algo é visto como possível “salvação” para lutar contra esse sistema, esse fator de salvação se mostra corruptível, normalmente por dentro. Assim, reafirmo que a série tem teor político bastante anarquista ao dizer que todas as possibilidades dentro da sociedade levam à essa “falha”, ou a corrupção. O maior exemplo disso é a divisão governamental criada por Victoria Neuman (Claudia Doumit) por motivações terroristas que ela mesma plantou – reveladas no final da 2ª temporada. Dessa forma a série reafirma a descrença nas instituições e na social-democracia.

A personagem Victoria Neuman aparece copmo defensora de órgãos que controlem supers. Na 2ª temporada é revelado que ela coordena ataques terroristas e o novo órgão está enviesado (Prime Video/Reprodução)

Por isso algumas pessoas se confundem tanto com os discursos políticos da série, que em temas sociais soam bastante progressistas mas em temas políticos é bastante anarquista. Quando a personagem Tempesta (Aya Cash) surge se mostrando nazista ao longo dos episódios, muitos fãs que também se identificam com a ela não entenderam sua aparição como possível crítica às ideias higienistas da personagem. Sim, a série critica seu comportamento denunciando até sua conduta de pagamento de salários baixos para pessoas em situação financeira ruim fazerem memes para a extrema-direita e bombardearem as redes sociais, num esquema de “gabinete do ódio”. Também são facilmente confundidos os ideais do Capitão Pátria (Antony Starr), que é mostrado como alguém adorado pelo sul dos EUA (historicamente mais racista e conservador devido à seu histórico escravagista) na segunda e terceira temporadas.

A associação da capa de Homelander com a bandeira dos confederados na 2ª temporada acende um alerta sobre as pessoas que se identificam com seu patriotismo, aqui sendo racistas do sul dos EUA e admiradores da escravidão (Prime Video/Reprodução)

Como se baseia em quadrinhos feitos durante a era George Bush, The Boys traduz sentimentos sócio-políticos que parecem estar sempre a ponto de explodir na atualidade. Sempre com o viés depreciativo, nada parece uma verdadeira evolução dentro deste universo. Na realidade, quanto mais a trama avança, mais a sociedade parece regredir, como os exemplos mostrados na segunda e terceira temporada em que a Rainha Maeve é vista com uma mulher e é tratada como Gay Maeve fomentando campanhas de marketing para o público LGBT. O discurso de Capitão Pátria durante seu aniversário faz sua popularidade aumentar entre homens brancos conservadores do sul, colocando em cheque a decadência do personagem, que deveria ser supostamente odiado por suas ações.

Até o sexo é bastante deprimente na série. Sendo uma das mais vistas no streaming, a obra teria a chance de inovar mostrando numa grande plataforma maneiras mais revolucionárias de ver as relações sexuais humanas – pois até certo ponto ela se propõe a isso. Mas só até certo ponto. Revoluciona em mostrar fetiches não-hegemônicos, o que a princípio é bastante progressista, contudo os deprime ao colocá-los quase 100% das vezes em situações absurdas que terminam em morte ou em suas cenas tragicômicas, fazendo o espectador “rir de nervoso” ao invés de ver o sexo fetichista como algo possível dentro de condições de consentimento. As cenas com sexo geralmente terminam em morte, gravações de sextape não autorizadas, sexos para promover relações de poder e risadas do público quanto a estes fetiches que, mesmo que fictícios, poderiam ser vistos como algo mais saudável. O universo de The Boys é um universo trágico e sem salvação.

Apesar de retratar um fetiche relativamente comum, The Boys utiliza disso para chocar e leva algumas pessoas ao riso (Prime Video/Reprodução)

O que vem pela frente?

Apesar de toda a decadência da sociedade capitalista mostrada em The Boys, a série está longe de ser comunista ou bastante progressista – apenas em temas sociais ela tenta dizer algo sem concordar com preconceituosos, mas não vê saídas para ir bater de frente com eles. A longo prazo, a série se encaminha para um enlouquecimento do Capitão Pátria e talvez para a morte de boa parte de seus personagens, conforme este vilão fica mais louco. O programa caminha para estragar todas as esperanças de um futuro melhor dentro do universo estabelecido e um “apocalipse” coordenado pelo Capitão Pátria é bastante possível de acontecer. Até Billy Bruto (Karl Urban), começa a se despontar mais como um personagem-espelho de Pátria, ao tomar atitudes bastante questionáveis focando na extinção dos supers e se tornando amargo na 3ª temporada.

As escolhas de encerramento da série talvez mudem essa visão exagerada de desesperança, mas atualmente isso parece cada vez mais distante e o showrunner Eric Kripke parece replicar certas narrativas dos quadrinhos que terminam em tragédia. Nas HQs somente Hughie e Luz-Estrela encerram a coletânea de histórias vivos e não vejo muita diferença para um fim da série. Um dos maiores problemas talvez seja o quanto conseguem manter viva essa chama da desilusão, que para mim, na 3ª temporada parece um pouco repetitiva – ninguém vai vencer o Capitão Pátria, pelo menos não agora, então por que eu gasto tanto tempo vendo pessoas tentarem fazer isso?

Claro que The Boys tem todos os seus momentos de diversão e de apelo popular, este questionamento é apenas levantado como um alerta de que talvez seja necessário adicionar algo a mais no tema da série ou encerrá-la por volta da 4ª ou 5ª temporada para evitar saturação de seu enredo.

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Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.