Euphoria: por que a 2ª temporada deixou público inquieto?
Concluída no dia 27 de fevereiro, a 2ª temporada de Euphoria contou com oito episódios
Publicado em 5 de março de 2022, por Guilherme S. Machado • Artigos, Séries e TVNo ar desde o dia 9 de janeiro, com lançamentos semanais e já em seu quinto episódio, a 2ª temporada de Euphoria de cara anunciava mudanças em sua visualidade ao passar da filmagem digital para analógica utilizando filmes de 35mm do modelo Kodak Ektachrome, conhecido por suas cores únicas, um ruído muito rico em informações mantidas na tela e saturações de cores perfeitas para filmagem diurna, além de uma captura de tons de pele de melhor funcionamento que na maioria das câmeras digitais.
Houve preferência por planos mais suaves e mais planos fixos ao invés dos grandes planos sequências onde gruas percorriam imensas distâncias, sendo o ápice no episódio 4 da 1ª temporada. Sobreposições, reflexos, cortes e transições suaves roubaram a cena principalmente no episódio 4 da 2² temporada. Oficialmente não estamos no mesmo patamar nestes dois ambientes.
Porém há estranhamentos maiores durante a 2ª temporada. A continuidade não se baseia apenas em cenas dramáticas, a estrutura de roteiro não se configura apenas neste modelo, desde a primeira temporada. Há uma mistura de gêneros primordiais narrativos, como Épico e o Lírico.
Em resumo, o gênero Dramático (não o subgênero drama que vemos em sites de streaming, por exemplo) consiste em sucessões de acontecimentos com relações de causa e efeito, a partir de um universo ficcional autônomo. Os gêneros épico e lírico possuem intervenções de terceiros, sendo o primeiro completamente enviesado pela voz de um narrador que interrompe a narrativa e dá seu ponto de vista sobre as situações, e tornando-a questionável a partir da razão ser concentrada em uma pessoa só; o segundo, passa por um filtro do espectador pois não entrega os resultados diretamente: é preciso processar, interpretar e refletir pois a forma final exprime estados de alma e abstrações.
Euphoria é uma série que contém os 3 gêneros em sua concepção, assim como várias outras, por exemplo Watchmen, Mr Robot e Legion. Acompanhando a série é possível perceber, no entanto, que os momentos épicos e líricos são muito notáveis desde a primeira temporada. Começamos o primeiro episódio com a protagonista, Rue andando por uma festa em que os cômodos começam a girar, com uma estrutura engenhosa montada em estúdio para a criação dela. Rue também narra as histórias de vida de outros personagens a cada início dos episódios na primeira temporada, causando certas dúvidas do quanto sua narração é enviesada.

Still da 2ª Temporada de Euphoria. (HBO/Reprodução)
Na 2ª temporada os estranhamentos do público poderiam partir de um “desastre” anunciado na última cena da primeira: Rue termina numa cena gigante e lírica que dá a entender uma grande recaída da personagem nas drogas. Uma das maiores regras de coordenação de sala de roteiristas é fazer com que o piloto das séries sejam uma amostra de todos os temas e estruturas de episódios que podem ser abordados posteriormente. E para o arco de temporada, o planejamento é indicado seguir arcos que durem uma temporada apenas, mas também conectar situações a algo maior, que seja um “fio condutor” da história. O fio condutor pode nos ajudar a indicar qual é o tema geral da série, que são os significados, os discursos e as intenções que cada série pode esconder ao narrar uma história.
Com tantas cenas abstratas, narradas por uma terceira pessoa que é justamente a personagem menos confiável da série (Rue) e com uma narrativa que termina como a temporada 1 termina, o tema de Euphoria se torna incerto. Rue termina e começa a primeira temporada tendo recaídas e desacreditada de si mesma, o que indica um retorno à posição inicial e uma incapacidade de mobilidade da personagem. A temporada 2 logo mostra outros personagens recaindo, cada um à sua maneira, em velhos hábitos: Kat percebendo que o impulso em mostrar seu corpo ao mundo não a fez gostar dele, Cassie entrando em relacionamentos questionáveis, Nate fugindo de seus desejos não-heteronormativos, dentre outros personagens que não aparentam ter passado por aprendizados ou grandes transformações internas que os fazem crescer.
Séries “mais básicas” tendem a passar de um ponto A para um ponto B enquanto discutem um tema, uma abordagem ou simplesmente aproveitam da redundância de seus episódios para dar válvula e escape para expandir seus temas, concomitantemente ao desenvolvimento do tema. Em Eu Nunca, Devi sempre está crescendo mesmo com seus erros constantes, fica claro a necessidade de terapia da garota que vai culminar provavelmente numa série com final de aprendizados sobre luto e crescimento interno na adolescência.
Em Little Fires Everywhere os filhos das protagonistas se encontram um no ambiente da outra e descobrem de maneira palatável o que as fazem diferentes, ao mesmo tempo em que o tema se decanta numa crítica às instituições de famílias nuclear que vivem de aparências numa sociedade capitalista. Em Midnight Mass uma escalada no horror a partir do descobrimento de um ser sobrenatural numa comunidade ilhada ocorre ao mesmo tempo em que o tema critica o aprisionamento mental e cultural de pessoas de religiões hegemônicas, usando o catolicismo da comunidade retratada como um exemplo extremista. Estes são apenas exemplos do que Euphoria não está fazendo.
A série se dá a liberdade de retornar aos temas e às personagens como foram deixadas na primeira temporada, apontando falhas de caráter em cada uma delas, constantemente questionando o quanto as pessoas em questão seriam “boas”, sendo falas ditas não só pela narradora, mas por outros personagens em vários dos diálogos exibidos. Logo, os temas de Euphoria estão muito mais próximos da impossibilidade de certas pessoas conseguirem sair dos buracos em que se colocaram durante a vida, ou da corruptibilidade humana e como ela afeta e se espalha nas pessoas ao redor. Essas ainda são possibilidades pois a série se dá muitas licenças poéticas em seus momentos líricos e acredito eu, que a cada temporada tentará se renovar em suas características visuais e de roteiro.
Ainda assim muitas pessoas apontam estranhamentos justamente nos momentos em que o roteiro caminha rente ao do gênero dramático. Tudo o que foi apresentado até aqui afeta a dramaticidade da série: não ter um tema explícito desde o começo, gêneros líricos e épicos misturados, personagens não confiáveis e corruptos dentro de seus próprios sentimentos e a não tentativa da série de percorrer uma linha reta que parte de um ponto A a um ponto B.
A estrutura apresentada no piloto não se repete em basicamente nenhum episódio dessa temporada a não ser o primeiro, gastando tempo demais com cenas líricas, alguns não tendo cenas de apresentação de personagem no “cold open” e outros focando apenas numa única situação (episódio 5). Então sim, claramente Euphoria está muito diferente do que apresentou em seu início. Em séries de TV isso pode ter consequências catastróficas na audiência, mesmo com um público tão fidelizado como o de Euphoria. Reclamações como aconteceram no final de Game of Thrones podem voltar a se repetir, principalmente na sensação do espectador que pode se incomodar, como quem sentisse: “eu não me inscrevi para isso”. Os últimos episódios da temporada, apontam essa falta de compromisso com o que já foi escrito em Euphoria: Mckay sumindo totalmente da narrativa, o aborto de Cassie nunca mais citado, o homem estranho na câmera de Kat, entre outros assuntos.
Um agravante surge durante os bastidores dessa temporada: o site Daily Beast afirma que suas fontes internas apontam um desentendimento entre Barbie Ferreira (Kat) e Sam Levinson (Diretor) que não concordaram entre si sobre os rumos da personagem Kat na série, resultando num corte maior de cenas dela durante a temporada. Também ouve reclamações de pessoas da equipe para o site, principalmente quanto a direção de Sam Levinson e a gravação da festa do primeiro episódio, que se estendeu por 15 e 17 horas dependendo dos dias, uma quantidade de tempo bastante exagerada e que pode apontar uma falta de organização.
Maude Apatow (Lexi) disse ao site que filmavam da 6 da tarde até 5 da manhã, já que essa cena se passaria a noite e que todos iam embora muito cansados. Jacob Elordi (Nate) foi direto ao ponto, disse que foi uma gravação longa demais e que logo se tornou um inferno. Algee Smith (Mckay) disse não saber o porquê de seu personagem ter deixado as telas e, enquanto o site especula sua falta de vacinação a HBO se mantém calada. Zendaya aponta que muitas coisas mudaram no set e no roteiro devido à Covid-19. Todas essas situações se tornam agravantes na falta de coerência direta e de um roteiro que sirva a propósitos de funcionar como uma sequência direta à primeira temporada.
Há também a falsa sensação muito disseminada no trabalho de divulgação fofoqueiro do público (o famoso “boca a boca”), em que pessoas começam a associar os dramas apresentados como relações quaisquer ou dramas que refletem problemas de toda uma geração. Ambos estão errados. Se Jules vai ficar com Rue, Kat com Ethan, Cassie com Nate, pouco importa. Todos os personagens se mostraram em momentos horríveis então antes de qualquer relacionamento ocorrer seria necessário um processo muito grande de amadurecimento, e certa parte do público levanta hashtags a favor de ships de casais que torcem para que funcionem. Não há para o que torcer na série, a não ser que todos se encontrem antes de tudo, algo que até agora não foi sinalizado como um arco que a série irá apresentar. A segunda opção foi algo que eu mesmo caí numa primeira sessão de Euphoria.
Meu primeiro contato fez com que pensasse na série como uma apresentação de uma geração de jovens depressivos, difíceis, que fogem de uma realidade complicada. Isso existe nela, mas o recorte mistura isso com cenas imensas de pulsão de morte, tomadas de atitudes e personagens com basicamente nenhum momento feliz ou motivos para serem felizes. Os dramas são aqueles capazes de levarem espectadores para o buraco, muito parecido com a abordagem de 13 Reasons Why porém com menos clichês e mais liberdades poéticas.
Euphoria também não retrata uma geração, sua própria série original (Israelense) envolvia a protagonista equivalente à Rue estando morta desde o início, o personagem equivalente à Nate matando um amigo dela por ser gay logo de cara, cenas grotescas recheadas de drogas e se passaria nos anos 90. Para fazerem sua própria versão da série, algo teve que ser herdado da original, e com certeza não foi uma necessidade de apresentar os novos dilemas geracionais ao mundo, mas a corrupção dos personagens e uma falta de esperança no mundo material parecem temas recorrentes nas duas.
Quando a revista Vice e o jornal The New York Times publicam matérias relativamente alarmantes em 2019, após o fim da exibição da série o que os adolescentes mais responderam era que os personagens eram relacionáveis com pessoas e adolescentes que eles conheciam, exceto que não na mesma intensidade.

O diretor Sam Levinson aponta como a peça seria uma interpretação dos personagens. (HBO/Reprodução)
Euphoria dá a entender ser um ponto fora da curva, uma representação ficcional deprimente sobre problemas sérios que são recentes, mas poderiam afetar diversas gerações de outras formas. Então não, não a considero como expositora de crises geracionais. Generation da HBO Max, faz esse papel de maneira muito mais concreta e realista, tendo em sua sala de roteiristas uma jovem de 19 anos, relatando e contando coisas sobre sua geração que ela havia vivido há apenas 3 anos anteriores ao lançamento da série.
Por fim, Euphoria está diferente, em estrutura, visualidade, roteiro, personagens e vários arcos dramáticos estão se tornando incógnitas por não serem retomados, por terem menos destaque ou só pelo seu sumiço, enquanto outros tomam muito tempo de tela ou tentam disputar com cenas abstratas que fazem os episódios chegarem a 1h de duração sem grandes situações. Devido a isto assisto a 2ª temporada de Euphoria como quem aceita uma viagem de fuga da realidade, não sinto realismo nem coerência total com a primeira temporada, exceto nas atuações da Zendaya em abstinência, não sinto problemas de geração expostos nem uma necessidade por resolução em dramas adolescentes e casais. É uma experiência muito rica em cores, visuais e significados, então tento fazer bom proveito das mesmas, que, com as mudanças a fazem ser, sim uma série mal quista por seu público.
Para melhor entendimento recomendo assistir: Euphoria Não É Uma Série De Drama E Eu Te Explico O Porquê! e para os bilíngues os textos citados: We Asked Teens If ‘Euphoria’ Is Realistic | The ‘Euphoria’ Teenagers Are Wild. But Most Real Teenagers Are Tame.