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Televisão norte-americana teve mudanças categóricas nos últimos 10 anos

Diferenças e mudanças que a indústria sofreu geram um conteúdo cada vez melhor

Publicado em 23 de abril de 2022, por Pop na Práxis, Séries e TV

Para uma produção audiovisual, principalmente séries de TV, era comum que um canal comprasse as obras e a tocasse por quanto tempo fosse necessário ou tivesse interesse. Assim tivemos uma quantidade absurda de 15 temporadas para Supernatural, 6 para Lost, 10 para Friends, 11 para S.O.S. Malibu (Baywatch), 6 para I Love Lucy e tantas outras renovadas e canceladas entre os anos 1990 e 2000.

No entanto, os mesmos anos 2000 trouxeram uma possível renovação para o formato de séries, principalmente as americanas: Família Soprano era lançada em 1999, abrindo portas e possibilidades que não seriam mais fechadas desde então. A série iniciou um ciclo de produção mais apurada pela HBO e mais atenta com teor artístico e contínuo em suas obras.

Abertura de Sopranos que, pela primeira vez na TV americana, deixava um protagonista às sombras da ambiguidade (HBO/Reprodução)

Formato

É importante notar as diferenças de séries procedurais e serializadas aqui: as procedurais eram “hiperproduzidas” dentre os canais por manterem uma fidelidade com espectadores que nem sempre poderiam acompanhar 100% dos episódios, já que estes iriam ao ar em momentos específicos da semana, não podendo ser vistos a qualquer hora. Assim, era de interesse geral entre os canais fazer histórias de “caso da semana”, comum em séries de policiais, médicos, advogados e detetives atualmente.

Grey’s Anatomy ficou famosa por episódios com estrutura procedural, porém com um novo formato de narrativa. (ABC/Reprodução)

Mas na época, os casos da semana se aplicariam a quase todas. Sopranos, no entanto, já pensava no formato serializado: aquele em que vemos uma continuidade direta entre os episódios. Caso você perca algum deles, ficará sem informações relevantes na história. Portanto, a série da HBO inovou em sua maneira de estruturar e criar uma unidade do começo ao fim.

O canal em questão se tornaria famoso por esse tipo de produção nos anos que se sucederam e este estigma não sumiu completamente até os dias atuais. A grande diferença é como o formato serializado se popularizou e hoje em dia é quase impossível as séries não utilizarem de técnicas de serialização, sobretudo na forma de manter o espectador atento e com vontade de continuar assistindo uma temporada de uma série, mesmo em sitcoms mais procedurais.

Houve um longo caminho até alcançarmos esse patamar, mas claramente a popularização do streaming foi de grande ajuda. Houve ainda um processo na maturação de pensamento do público: em séries dos anos 1990 e 2000, muitos assuntos eram “pintados” como simples demais, com figuras normalmente de classe média e imagens suavizadas da própria realidade, com raras exceções como Um Maluco no Pedaço e outras que seriam mais incisivas, ainda que com humor (perdendo um pouco do drama, que gera robustez em assuntos críticos).

Tendo como exemplo Queer as A Folk, que rendeu duas temporadas inicialmente no Reino Unido (1999-2000) e mais cinco na versão americana (2000-2005), não foi um grande marco do ponto de vista artístico-reflexivo para séries de TV. Apesar de expor o modo de vida de um núcleo homossexual, o viés e discurso da série era principalmente exibicionista, simplesmente mostrando situações ao invés de levar o público a refletir sobre as mesmas.

Assim, ela passaria pelo filtro de “cancelamento” (sim, aquele do Twitter) por suas características muitas vezes grotescas emitidas em série: preconceitos com personagens soropositivos não era uma reflexão, às vezes pura repetição; mulheres completamente ignoradas e a série não passaria num teste de Bechdel dentre outros exemplos.

À esquerda, o elenco do Reino Unido e à direita, o elenco americano (Channel 4/Showtime/Reprodução)

Não existe nada muito notável na TV em geral que, por exemplo, denunciasse grandes esquemas ou abraçasse diferenças extremas de grupos que a sociedade normalmente deixaria de escanteio, pelo menos não até a década de 2010.

2010 e suas mudanças

É claro que algumas séries se destacam nos anos 2000 ainda, como Mad Men (2007-2015) por exemplo, mas aqui comentaremos sobre a produção em massa que passa por um viés artístico-reflexivo em relação a realidade em que se vive.

Nos anos 2010, diferentemente desse outro momento, as primeiras tentativas de progresso em temas delicados ao público e que ainda refletissem sobre a realidade já haviam sido feitas, então em vários casos era possível dar passos mais à frente nesse quesito. Glee tentou abraçar várias minorias “à lá Ryan Murphy” (com duas temporadas boas e quatro que decaíram) e colocava outra forma de encarar as séries na mesa.

Glee (2009-2015) tentava abraçar várias minorias de uma só vez, algo que não havia tido tanto sucesso anteriormente na TV americana. (Fox/Reprodução)

Em 2012, outro evento importantíssimo ocorria: a Netflix lançava sua primeira com licenciamento e selo original Lilyhammer, com Steven Van Zandt (Família Soprano). Em 2013, a corrida pela originalidade se intensificou com mais um passo: lançamentos de Orange is the New Black e House of Cards, ambas tratando de temas de forma mais crua — sáficas numa prisão e corrupção infiltrada no governo americano com um personagem de caráter duvidoso. Claro, o personagem de caráter duvidoso é justamente o que levou a HBO ao seu status em Sopranos, sendo a própria abertura do programa ambígua.

Assim algo foi sentido concomitantemente pelos roteiristas de TV, que adicionavam personagens LGBTs e negros em várias séries de sucesso (The 100 — que acabou em queerbait na 2ª temporada —, The Real O’Neals, Brooklyn 99, Shameless, Teen Wolf). Esta é apenas uma das facetas das mudanças ocorridas em 2010.

Na mesma década, talvez até como reflexo desse viés que buscava levar à TV “representatividade positiva” — que nem sempre era positiva, mas este é tema para outro artigo —, temas complexos apareciam em séries de maior amplitude: The Americans com temas relacionados à espionagem e comunismo dentro dos Estados Unidos; Breaking Bad, que refletia sobre as dívidas milionárias de certos tratamentos do sistema de saúde americano e sistemas internos do tráfico de drogas; Lucifer, que mesmo sem grandes inovações narrativas foi “apedrejada” pelo grupo conservador cristão norte-americano “One Million Moms” (Um milhão de mães, em tradução livre) pelo simples fato de haver um personagem com esta representação na TV, e os próprios casos de Orange is The New Black e House of Cards já citados.

Este processo levou muitos canais a testarem mais e movimentarem nichos de público. Preacher, da AMC (mesmo canal de The Walking Dead e Breaking Bad), também sofreu ameaças do grupo One Million Moms e se manteve durante quatro temporadas até ser finalizada sem cancelamento. Sense8, na Netflix, comprovava-se como uma série “fod*-se os conservadores”, ao mostrarem cenas para maiores de 18 anos e orgias com personagens pansexuais e transexuais durante sua narrativa. Isso causa sim uma diferenciação no conteúdo — e no conteúdo que dá lucro!

A Netflix seguiu apoiando financeiramente a Parada LGBT de São Paulo durante alguns anos e em 2018 levou o elenco para a Av. Paulista, onde gravaram uma cena. (Netflix/Reprodução)

Enquanto nos anos 1990 somente alguns temas menos sensíveis eram abordados, já que poderiam afetar o público-alvo e causar a falência das séries (bancadas de acordo com o apelo que seu material causava no espectador), nos anos 2010 a grande maioria dos canais começaram a notar que tudo bem falar de temas sensíveis, às vezes você encontra um nicho que acompanha a obra do mesmo jeito.

No Reino Unido e alguns países da Europa, diferente dos EUA, o dinheiro investidos nas séries televisivas ocorria por incentivos do governo (BBC ou financiamento/dedução fiscal), e em outros casos quando oriundos de canais de TV como ITV e Channel 4, havia maior abertura para artistas e temas “sensíveis” irem ao ar sem interferência direta de executivos para censura. No país, as minisséries também fazem um grande sucesso e são exportadas para todo o mundo. Neste formato não há possibilidade do roteiro se escorar em “casos da semana”, indo normalmente direto ao ponto e fazendo um questionamento, uma afirmação ou uma reflexão sobre o universo apresentado.

A minissérie Boys form the Blackstuff, já em 1982, questionava e denunciava o desemprego crescente no governo de Margaret Tatcher mostrando as dificuldades de um grupo de homens em conseguir emprego após políticas neoliberais serem implementadas. (BBC2/Reprodução)

O resultado deste tipo de escolhas em que foram levadas em conta necessidades artísticas e os desejos de grandes estúdios/canais/distribuidoras gerou uma “era de ouro” da Televisão Internacional. Séries tocando em temas difíceis e levando Emmys a rodo devido a coragem e a inovação na maneira de conduzir suas histórias. Hoje em dia, é possível ver alguns programas com críticas que afetam a própria indústria audiovisual — Hollywood (2020), Pam & Tommy (2022) — e atacam diretamente ou indiretamente os canais que as produzem — The Boys com discursos que atacam e denunciam bilionários, é veiculada no streaming da Amazon, cujo dono possui 170 Bilhões de dólares em sua fortuna.

Cutucando a onça com vara curta

A ousadia e originalidade de roteiristas chega a ser tanta que outros assuntos mais densos que não estariam numa produção americana quase que nunca na história recente do país também conseguiram seu espaço com a nova geração: anticapitalismo e questionamentos do sistema vigente (Mr. Robot, Watchmen, Lovecraft Country, Dopesick). É preciso coragem, mas também de muitas concessões de executivos do alto escalão para que esse tipo de conteúdo seja vinculado da forma que foi em meios de comunicação de massa, pois vai de encontro com interesses lucrativos de diversas empresas.

Na série Hunters, do Prime Video, a Disney é diretamente atacada por ter contratado ex-cientistas do partido nazista (que praticavam eugenia) para apresentar programas infantis dentro do canal. Em Mr. Robot, um conglomerado fictício (E. Corp) concentra a renda da maioria da população na mão de pessoas poderosas que utilizam de práticas abusivas e deixam a população sem outras alternativas para crédito, atacando indiretamente sistemas bancários e empresas do mercado financeiro. Em Pose, atacam indústrias farmacêuticas e o governo pela inércia em agir diante do risco do HIV para a população em geral devido ao estigma da doença cercar apenas grupos LGBTs e os testes em remédios não serem considerados urgentes levando vários infectados à morte.

A organização “Anonymous” transmite clandestinamente transmissões de denúncia dos males da Evil Corp em Mr Robot. (Universal Cable Productions/Reprodução)

Estes são apenas exemplos do que a produção de séries tem em suas mãos, possibilidades infinitas de crítica, reflexão e que diante de certos canais conseguem liberdade na criação e concepção audiovisual nas mesmas. As divergências disseminadas por estes veículos são notáveis, imensas e mostram quanta qualidade foi esnobada pela TV do século passado que se sobrecarregava da necessidade de mostrar um mundo “colorido”, sem defeitos, estagnado e de entreter a audiência gerando o que conhecemos na história mundial como “pão e circo”. Se divertir não é crime nenhum, mas ao sermos expostos somente a este tipo de conteúdo do século passado, o que sobraria em nossa mente? A resposta é que provavelmente se criaria ali um espaço vazio de possibilidades, uma normalização da “isenção” em qualquer situação, mesmo as de injustiça e uma morbidez característica de grupos que agem como massa de manobra.

Claro que, em vários dos casos, os grandes bilionários que têm controle sobre os canais não se sentem ameaçados por essas dissidências, já que aparentemente está na moda reclamar do sistema. Rende comentários no Twitter e visibilidade. Um exemplo “bobo” ocorreu no dia 20 de Abril de 2022 quando foi ao ar no Big Brother Brasil, reality de maior audiência brasileira, uma piada do humorista Paulo Viera relacionado a “só ter homem branco no alto escalão da Globo”. Eles ganham o lucro, a visibilidade e seguem em frente.

Big Terapia: o trecho “polêmico” tem quase 90 mil curtidas no Twitter (Rede Globo/Reprodução)

Mas isso muda pessoas, mesmo que de maneira gradual, há um potencial em gestação por aqui. Se algum dia eclodirá, não cabe à arte decidir o que seu público faz com a obra. A utopia, no entanto, se faz na ideia de um mundo melhor e mais justo, e muitos destes produtos sob o sistema (capitalismo, machismo, LGBTfobia, etc.) que os tira do papel abrem espaço na mente de seres humanos que os consomem. O consomem também pelo sistema os entregar de mão beijada um produto de um grande conglomerado. Mas arte sempre pôde mudar pessoas e pessoas mudam o mundo.

E isso tudo é bom, ruim ou neutro?

Acredito que esse movimento coletivo é maravilhoso para o universo de séries de TV internacionais e até para a narrativa ficcional no geral. As produções dessa nova leva de série estão tendo reconhecimento mundial e chegando em locais onde antes não se falava de assuntos “complicados”. Nunca se viu um ensino médio e ensino fundamental com tantos jovens cientes de seus coletivos, que tanto para o bem quanto para o mau, conversam e discutem abertamente sobre gênero, sexualidade, racismo, justiça social e muito mais.

Um dos grandes feitos dessa “onda” é a visualização e cuidado ao tratarem de mortes na televisão. Dr. Death e Mare of Easttown, ambas de 2021, são dois exemplos de como esse assunto vem sendo mudado. Ao tratarem de assassinos a sangue frio, o primeiro com o potencial para virar uma sequência de mortes escrachadas e gore, do ponto de vista do psicopata, e o segundo ao narrar a trajetória das vítimas que poderiam ser descartadas como muito se ocorria em slashers nos anos 2000, nenhuma das séries o faz.

Em Mare of Easttown (2021), a conclusão de um assassinato termina em choro e uma tentativa de compreensão de todas as partes. (HBO/Reprodução)

Essa atitude alcançou a Disney, em O Falcão e o Soldado Invernal (2021) ao questionar publicamente como se formam as pessoas que chamamos de “terroristas” e questiona como o governo americano tem um papel fundamental na criação deles. A que ponto chegamos?! Isto é quase um milagre, pois a Disney sempre foi ultraconservadora em evitar assuntos políticos para continuar vendendo sua imagem imponente de produtos “familiares”. Mas como se mantém uma imagem familiar enquanto a família nuclear também se deteriora?

É importante celebrarmos, que mesmo que com algumas imperfeições, a produção de séries mundial caminha para a procura e encontro da nova geração com os defeitos dela mesma. Não há nada que seja mais esperançoso do que uma revisão do que já se fez e também do que se pretende fazer. Pelo menos eu acredito numa função social presente nas artes e estas produções aliviam meu fôlego toda vez que as assisto. Gostaria de poder dizer de maneira categórica com um “é isso” que as séries deveriam ser totalmente. Mas a cada dia me surpreendo mais com as narrativas e os pontos de vista que nunca havia pensado antes, e elas me apresentam com tanto carinho, tanto cuidado em se manter irretocáveis por um tempo, que acabo por acreditar que todos os pontos de vista são, de alguma forma, válidos.

Seja por meio de um viés super liberal que Pose vem me apresentar o submundo das travestis negras nos Ballrooms dos anos 1980 dos EUA, seja pelo viés de “centrão” que tenta frear o cancelamento a qualquer custo em The Morning Show ou até pela reiteração sociológica profunda sobre a maneira de funcionar os cérebros de cristãos conservadores em Missa da Meia-Noite. Mesmo séries que trataram seus temas da pior maneira possível (13 Reasons Why) elevaram o debate sobre suicídio numa escala nunca antes vista. E eu abraço tudo isso, pois tudo me fez questionar e refletir sobre o lugar que ocupava no mundo. Agora que já passamos desse momento de representatividade de temas (assédio, racismo, corrupção) estamos tentando rever o tratamento das situações e como melhorá-las.

The Underground Railroad (2021) toca na ferida da escravidão e revê anos e anos de representação sobre como mostrar na tela um período tão difícil. (Prime Video/Reprodução)

Todos esses programas mostraram pontos de vistas completamente genuínos partindo de seus personagens, seus microuniversos e expandiram suas bolhas para o mundo, como se os roteiristas não vivessem somente no agora, mas também no futuro, para muito além da representatividade. Um futuro onde almejam que aqueles personagens — baseados em pessoas reais, ou em vivências semelhantes — pudessem ser respeitados como são e tivessem acesso a uma boa vida, com qualidade. Todas essas “bolhas” apresentadas me mudaram um pouco. O meu maior desejo seria que mudassem um pouco a quem convive comigo. Quero ver mais, sentir mais dessa novidade que várias dessas séries me trouxeram. E espero que o grande público também possa optar por assisti-las quando tiver a oportunidade.

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Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.