Portal Pop3

Em Nome do Céu: minissérie reflete sobre interpretações religiosas e suas aberturas para a violência (Crítica)

Religião Mórmon é tema de série true crime disponível no Star Plus do Brasil

Publicado em 15 de junho de 2022, por Críticas

Exibida entre abril e junho de 2022, a série Em Nome do Céu (Under the Banner of Heaven, no original) narrou o caso de crime real do assassinato duplo de Brenda e Erica Lafferty. Na série, disponível no Brasil pelo Star Plus, partimos do ponto de vista dos detetives Jeb Pyre (Andrew Garfield) e Bill Taba (Gil Birmingham), que investigam o caso após os assassinatos ocorrerem. Num formato de “detetives descobrindo o porquê dos mistérios apresentados” a minissérie nos apresenta um submundo de intrigas familiares e diferentes versões de entendimentos bíblicos que se tornam força motora para a violência.

Neste caso real em específico, a religião é um elemento marcante e motivador dos assassinatos, e durante a temporada somos aos poucos introduzidos ao universo do mormonismo estadunidense. Ao mesmo tempo que vemos uma família contemporânea seguindo a risca os comportamentos incentivados pela religião, lidamos com as justificativas e o passado escondido por ela com flashbacks do início de sua criação dentro dos EUA.

(FX/Reprodução)

A atmosfera que a série passa desde o começo é muito estarrecedora: a família Lafferty é mostrada como um antro de uma suposta perfeição cristã, facilmente agitado: a chegada de Brenda (Daisy Edgar-Jones) à família após se enamorar com Allan causa incômodo pela mulher ter uma atitude e responder aos “homens da família”.

São denunciados muito facilmente o machismo e o racismo Mórmon durante a série: numa cidade cheia de mórmons qualquer personagem com dois tons de pele mais escuros já causam falas racistas nos personagens religiosos e no episódio 7 já é deixado muito claro que eles liberaram a participação de pessoas racializadas nos anos 80 somente por conveniência.

Eis com o que estamos lidando: uma “seita” cristã, isolada do mundo moderno, com um senso muito forte de justiça cristã, de moralidade e de acompanhamento das atitudes dos seguidores. Os mais fiéis e mais ricos são claramente bem favorecidos por este microcosmo enquanto os que acreditem em outras formas de ver a mesma religião sejam facilmente rechaçados dentro da lógica mórmon.

(FX/Reprodução)

Brenda, brilhantemente interpretada por Daisy Edgar-Jones (mais conhecida por Normal People e Flesh) é justamente essa pessoa que causa incomodo numa sociedade tão segmentada e estruturada como os mórmons: ela tem desejos próprios e sonha com uma carreira no jornalismo. Em contrapartida o restante das mulheres Lafferty como Diana (Denise Gough) e Matilda (Chloe Pirrie) são ensinadas a obedecer seus maridos e acabam se tornando fadadas a loucura que posteriormente eles desenvolvem.

Como segunda linha narrativa temos as investigações de Jeb Pyre, também num show de interpretação de Andrew Garfield. Ele diz ter investigado a fundo a maneira de pensar de mórmons no interior do Utah para conceber seu personagem, que junto de Bill Taba investiga o caso de assassinato de Brenda e da filha.

Ambos os detetives são fictícios, mas adicionam camadas densas para a continuidade da história: Jeb é um mórmon fiel que conforme descobre as motivações do assassinato vai gradativamente perdendo a fé e é rapidamente repreendido pela igreja que outrora o apoiava. Bill é descendente de indígenas originários da América do Norte e sendo ateu ajuda a colocar senso na cabeça de Jeb enquanto ele se contorce entre o que crê ou não.

(FX/Reprodução)

A parte masculina da família Lafferty se torna “denunciada” pela série ao condensar todos os problemas estruturais da religião em personagens. Funcionando numa lógica patriarcal e liderada por Ammon (Christopher Heyerdahl), os homens se veem necessitados de manter o nome da família e de criar uma manutenção longeva para ela.

Assim, o patriarca joga muitas de suas frustrações e seus desejos para cima dos filhos e netos que criam no imaginário uma forma de levar as leis de Deus junto da necessidade de serem uma família perfeita. Os mais afetados são Ron (Sam Worthington) e Dan (Wyatt Russel — mais conhecido por O Falcão e o Soldado Invernal) ambos sem experiência e com muitas questões internas mal resolvidas.

Na série, uma simples mudança no patriarcado gera problemas financeiros e justificativas da família em Deus e no divino para problemas no negócio. Assim, há demonstrações de como tudo dentro da lógica religiosa mórmon é resolvida pela “oração de decisão” — orar em Deus para decidir sobre algo — e pela audiência da voz do Espírito Santo — que rapidamente se tornam as vozes na cabeça dos fiéis.

(FX/Reprodução)

A lógica dos Santos dos Últimos Dias, nome dado a vertente mais popular do mormonismo, é falha ao varrer os problemas dos fiéis para de baixo do tapete quando eles mesmos buscam por respostas em sua vida pessoal ou religiosa. Muitos dos flashbacks que a série expõe são informações não comentadas pelo alto escalão da igreja e que vindo à tona, abalariam seus membros facilmente.

Chocando os espectadores a série mostra como esses posicionamentos podem aparecer em vertentes conservadoras que viviam na época retratada (anos 1980) longe de toda a civilização, não pagavam impostos e aprovavam a poligamia e pedofilia institucionalizadas e também uma outra vertente mais liberal que também vivia isolada no entanto mais próxima de uma comunidade hippie com sexualidade fluida e poligamia em nome de Deus.

O que é possível pensar com Under the Banner of Heaven são as conexões com a sociedade atual e a da época e suas reverberações em cristianismos neopentecostais. Além disso situações menores como a necessidade de “ouvir o Espírito Santo” se tornam delicadas dentro de qualquer igreja, que sem os pés no chão começam a agir em prol de seus desejos mais humanos em nome do divino.

Nesse sentido a série se torna ótima em suas reflexões, processos e o único detalhe que chega a me desagradar um pouco é sua rapidez com o contar da história em poucos momentos e uma conclusão que não explica em detalhes as implicações e possíveis detalhes do julgamento deste crime.

Em Nome do Céu
Under the Banner of Heaven
FX
Dustin Lance Black
Dustin Lance Black, Jason Bateman, Michael Costigan, Anna Culp, Brian Grazer, Ron Howard, David Mackenzie, Gillian Berrie, Mackenzie Berrie, Samie Kim Falvey, Erica Huggins
1

Nota: 4

Nota: 4
Tags: , , , ,
Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.