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Pachinko é uma primorosa ode à sabedoria carregada pelas feridas do passado (Crítica)

1ª temporada de narrativa tocante do Apple TV+ é também uma das mais bonitas da televisão mundial

Publicado em 10 de maio de 2022, por Críticas

Pachinko, série do Apple TV+ é mais uma das surpresas que o streaming nos trouxe esse ano. Ao notarmos o tipo de conteúdo original que o canal produz é interessante pensar que tenta fazer o mesmo que a HBO fazia nos anos 2000: liberar dinheiro para obras que elevem a qualidade e credibilidade de sua plataforma. E por enquanto funciona muito bem. Pachinko é mais uma das obras do streaming que deve entrar em listas de “melhores do ano” e que se torna um “must see” de 2022. Haja qualidade para já em abril (data de lançamento da série) alcançar este patamar, mas a produção tira isso de letra.

Nela, narra-se a trajetória de uma família em três momentos diferentes da própria história: o primeiro com uma protagonista criança até sua juventude, vivendo no ambiente rural da coreia (antes da divisão) na década de 1910 até 1935, 1975 mostrando a adolescência de seus descendentes e por último em 1989 com relações familiares mais velhas que esta mesma personagem construiu. Apesar de parecer simples, que em enredo acaba sendo realmente, a execução se torna extremamente complexa. Primeiro, porque a série é trilíngue (Coreano, Japonês e Inglês), segundo, pois se passa em três países diferentes e, em terceiro, pois tenta exprimir sentimentos muito complexos em cena da maneira mais íntima e sutil possível.

(Apple TV+/Reprodução)

Em um primeiro momento, para além da apresentação de personagens, temos Sunja (interpretada por Yu-Na, Kim Min-ha e Youn Yuh-jung) como a protagonista mais evidente. Enquanto criança, ela descobre o mundo, mas é barrada em alguns momentos devido ao subjugo do império japonês presente na região onde vivia. Neste primeiro instante, conhecemos os costumes, as vivências, dificuldades e alegrias de uma pessoa vinda daquela situação. A busca pelo extraordinário em uma configuração ordinária enche os olhos, pois tudo é magnificamente bem fotografado e a direção trabalha com referências cinematográficas das três regiões de que se fala — EUA, Coreia e Japão. Logo, este período de tempo se torna uma viagem bucólica que transporta o espectador para uma época difícil, porém simples — e de beleza própria.

(Apple TV+/Reprodução)

Logo após isso, temos a apresentação de um núcleo bastante extenso no enredo: o de 1989, com um foco maior em Solomon (Jin Ha), neto de Sunja e trabalhador assíduo na área de venda de imóveis nos EUA. Seu contexto é muito oposto ao da vida inicial de Sunja, instigando o espectador a criar curiosidade sobre o caminho que a avó do garoto percorreu para que ele chegasse nessa posição. Em terras americanas, ele sofre racismo dentro do trabalho e precisa se provar tentando comprar um imóvel importante para a empresa como um desafio que ditará sua trajetória na carreira. Solomon funciona em Pachinko como um opositor a história da família sem a mesma experiência, trilhando um novo caminho em busca da riqueza. Em contrapartida, ele não vê na história da própria família uma importância em relação ao que fora acumulado de sabedoria empírica e emocional.

Na obra, o passado se encontra no presente e o presente esteve adormecido no passado, como caminhos que sempre se cruzam. No episódio 4, um dos melhores, há o confronto direto da ancestralidade com desejos das gerações atuais em trazer a modernidade. Enquanto ode às águas passadas que nos trouxeram até aqui, há choro, lágrimas, desencanto e reencontro com o que os personagens gostariam de ter mas que se vendo naquele momento, não possuem. Neste momento, se sobrepõem Sunja jovem morrendo de medo de deixar sua terra natal e se jogando nos braços da mãe pedindo colo; Solomon desiste de tirar uma moradora que gostaria de morrer no mesmo terreno em que cresceu por memória afetiva; Sunja idosa volta pela primeira vez à terra natal depois de uma vida adulta no Japão.

(Apple TV+/Reprodução)

Este é o poder desta série: encontrar pontos em comum em ciclos que se dão em países e com pessoas diferentes, pois a família se torna pivô do expurgo de sentimentos bons e ruins para o roteiro que apenas analisa a vida e suas contradições. Tudo é belo. Tudo é importante. Memórias fazem daqueles personagens, “eus” líricos. “Eus” líricos, pois o último episódio nos revela (via documentário) quantas vidas estão envolvidas  e de certa forma condensadas nos personagens, já que o momento histórico foi real e tão doloroso quanto mostrado nas telas.

As atuações são primorosas, sem destaques específicos para ninguém pois considero todos ótimos. O que se torna interessante aqui são algumas das maneiras que a direção opta por encenar e coreografar cenas. O oriente é bastante conhecido por incentivar o esconder de emoções profundas. As mulheres principalmente aparecem em composições 2D com frequência e escondendo o rosto, como em alguns filmes do cineasta japonês Yasujiro Ozu e algumas referências visuais de Akira Kurosawa. Mas a série consegue ir além, para um certo carisma, afeto e exceções do cinema coreano e expurga sensações em cenas que fecham ciclos internos apresentados, como a última do episódio 4. Durante o episódio 7, há uma filmagem mais semelhante à de filmes japoneses e o tamanho da janela/aspect ratio se alteram, se firmando definitivamente como uma série plural em todos os sentidos.

(Apple TV+/Reprodução)

A série ainda se conecta com vários públicos, vários tipos de pessoas, que podem carregar em sua árvore genealógica um passado obscuro e difícil. Há temas como: trabalho de homens e mulheres para sustento da casa, luto, perda de parentes para a doença, vivência em tempos de crise, subjugo de um povo sob um sistema militar, sonhos para além do mundo limitado da zona rural trabalhadora, amor de mãe e tantos outros.

Para quem nasceu por exemplo, na era democrática do Brasil (após 1985), em famílias bem abastadas ou simplesmente classe média, muitos dos temas passam quase como incompreendidos para quem não teve muitos traumas. Durante a explosão da pandemia de coronavírus em 2020, era visível como poucas pessoas dessa época estavam acostumadas ou pelo menos associadas com situações de desastres naturais, dificuldades extremas ou mortes em massa. Para os personagens de Pachinko, as dificuldades são constantes, devido ao momento histórico em que vivem, mas também porque o destino e a sorte raramente fluem ao favor deles.

(Apple TV+/Reprodução)

Esta constante me lembra dos eventos que acometiam uma pouca parte da história ancestral da minha família, durante alguns dos anos que tenho conhecimento para falar sobre. Por exemplo, os anos da vida adulta de Sunja foram próximos à 2ª Guerra Mundial. No Brasil, mesmo sem conflito direto, meu avô dizia que faltava muita comida e os preços flutuavam bruscamente. Durante o período dos anos 1970,  minha mãe, irmãos e avós viviam no interior de São Paulo e passavam por algumas situações semelhantes à de Sunja jovem, por ser um ambiente rural e distante da institucionalização do país pessoas passavam fome, crianças trabalhavam como adultos, a família vivia de maneira muito simples e a mãe solo tinha que se virar para manter a família e os filhos.

Quando falarmos da série é disto que lembraremos: uma forma linda de revisitar o passado, olhar o presente, abrir as feridas, chorar e aprender a encontrar beleza nos momentos em que a vida continua. O fio condutor são as intempéries que a vida nos joga e como conseguimos sair delas até as próximas aparecerem. Além disso exalta toda a história que as rugas de nossos antepassados carregam, dando relevância, palco e humanização a quem não é acolhido de imediato pelas novas gerações.

(Apple TV+/Reprodução)

Pachinko dá uma nova possível roupagem a dramas coreanos e tem tudo para ser indicada em massa ao Emmy Awards deste ano!

Pachinko
Pachinko
Apple TV+
Soo Hugh
Soo Hugh, Michael Ellenberg, Lindsey Springer, Theresa Kang-Lowe, Richard Middleton, Kogonada, Justin Chon, Sebastian Lee, David Kim Ethan Kuperberg
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Nota: 4.5

Nota: 4.5
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Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.