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The White Lotus: série migra da luta de classes para relacionamentos disfuncionais entre ricos (crítica)

Nova leva de episódios causou diferentes reações em seu público, e para mim conseguiu ser melhor que a 1ª.

Publicado em 16 de dezembro de 2022, por Críticas

A 2ª temporada de The White Lotus, que moveu os ânimos de certos núcleos da internet durante sua estreia semanal de episódios, chegou ao fim neste último domingo (11).

Um dos grandes motivos nas discrepâncias entre temporadas é a falta de clareza sobre o tema neste salto que tivemos entre uma e outra. Temas normalmente são subtextos bastante complexos no enredo de séries de TV que podem aparecer em boa parte dos episódios e fazem parte de uma mesma continuidade de uma ideia passada para os espectadores, deixando algum ponto de vista sobre sua visão de mundo explícitos na subjetividade da obra.

Enquanto na temporada que se passa no Havaí, a luta de classes e o ódio dos trabalhadores em relação àqueles que os exploram foi escancarado, nesta temporada tratamos de questões sobre relacionamentos amorosos; logo o tema de White Lotus não gira em torno necessariamente da luta de classes, e a princípio isso me confundiu – e talvez tenha confundido outros espectadores.

No primeiro episódio já somos apresentados às Teste Di Moro, um tipo de escultura de cerâmica que existe narrando uma traição entre casais que já estiveram naquela terra com tramas que envolvem amor, ódio e assassinato. Isso facilmente resumiria a 2ª temporada, mas podemos gastar mais tempo nos debruçando sobre cada um dos núcleos que tivemos o deleite de conhecer.

(HBO/Reprodução)

Cameron e Daphne vs Ethan e Harper

Numa mescla entre o que é dito e o que é feito, conhecemos dois casais que vivem de maneira muito distinta: Harper (Aubrey Plaza) e Ethan (Will Sharpe) acabaram de ficar ricos, são precoces poderosos sem as mesmas pretensões de outras figuras do alto escalão monetário. Harper deixa claro no começo que é uma pessoa culta, veio de baixo, tem um trabalho importante e se assusta com o quão alheios à realidade Cameron (Theo James) e Daphne (Meghann Fahy) são – ricos há bastante tempo, não se importam em votar, não conhecem os problemas da atualidade e convencem Harper que possuem um relacionamento de fachada.

(HBO/Reprodução)

Harper é bastante cínica e julga facilmente a vida alheia. Num primeiro momento achamos que ela pode estar certa, mas conforme a trama avança ela se mostra não só preocupada com a vida alheia como também incomodada: se o casal do quarto ao lado vive em uma relação complicada ela além de apontar a situação quer estar certa, impondo de alguma forma a sua visão de mundo acerca dos dois.

Daphne, a princípio parece uma americana rica genérica e loira, mas que aos poucos mostra que tem tanta autonomia em seu relacionamento quanto o marido. Cameron se mostra desde o princípio aquilo que é, mas ele não parece ter nenhuma crise com isso — ter a imagem de cafajeste não o afasta da esposa nem o faz agir muito diferente quanto a suas traições.

As maiores questões deste núcleo têm relação com o que se ganha performando uma falsa estabilidade, o que se conhece realmente sobre os parceiros e o poder das meias verdades. Harper e Ethan exigem uma estabilidade nas verdades que vão contar, como se fossem um livro aberto para o outro 100% do tempo.

Mas ao ser colocada contra a parede, Harper cai numa armadilha criada por ela mesma e conta que em sua meia verdade não citou que omitiu o beijo que deu em Cameron. Ethan mesmo que com uma mirabolante verdade de não ter feito sexo na noitada em que ficou bêbado, resolve relevar a maneira absoluta como se é sincero com Harper para traí-la também com Daphne. O casal que parecia aquém aos dramas do alto escalão da sociedade, se torna rapidamente um espelho do casal rico há mais tempo.

(HBO/Reprodução)

Não creio que neste drama a não-monogamia e poligamia entram nos dilemas dos personagens (apesar de no episódio 5 haver uma brecha para que nem os filhos de Daphne sejam exatamente de Cameron e sim do personal trainer dela). Eles não chegam a ter abertura para discutirem entre si mesmos sobre o fato de quererem estar com outras pessoas. No caso de Ethan a própria relação de traição faz com que ele novamente sinta vontade de se relacionar com Harper. E talvez todos estariam melhor se abrindo, mas a série deixa claro que para eles este pode ser um movimento muito doloroso de se fazer.

A família Di Grasso

Outra família formada à base de traição são os Di Grasso. Bert, Dominic e Albie (Adam DiMarco) estão cercados de traições o tempo todo, todas expostas pela traição escandalosa de Dominic contra sua esposa – ocorrida num tempo anterior à série. Ao mesmo tempo em que ele tenta reatar a comunicação com a mulher, num primeiro impulso sexual ele utiliza dos serviços de Lucia, até a colocando para dentro do hotel. Ainda quando ele decide se esforçar mais para reatar o casamento, não cogita desligar Lucia e Mia de sua conta, dando tempo para elas excitarem seu pai e filho.

(HBO/Reprodução)

Os três são um caso de criação que não necessita de novos aprendizados, apenas repassam as mesmas informações sob as mesmas óticas problemáticas dos pais. Bert ao descobrir a questão da traição no casamento do filho não a repudia em nenhum momento, apenas critica o fato dela ter sido descoberta. Albie mesmo assistindo de longe o sofrimento que sua mãe e irmã passam, não se coloca no lugar delas e continua sendo alguém que faz o meio de campo entre os dois, não recusando a viagem que o pai pagara. Isso coloca todos os três em locais muito semelhantes, se diferenciando apenas pela geração em que vivem, mas com atitudes praticamente iguais.

Ainda em Albie, há uma vivência baseada em aparências, já que ele foi à universidade num momento em que teorias feministas e progressistas são bastante conhecidas. Isso faz com que ele se esconda em sua personalidade, aparentando mais preocupado com as mulheres do que realmente é. É uma criação tão falsa que sua experiência com garotas parece bastante inocente e pouco extensa quando ele cai no golpe de Lucia.

(HBO/Reprodução)

Há na família Di Grasso também uma necessidade por pertencimento. Recentemente vi um TikTok de contra-argumento para pessoas que reclamam das alterações de personagens inicialmente brancos que se tornavam negros ou asiáticos por adição de representatividade. Nele, uma menina negra argumentava que os homens brancos começaram a se sentir acoados pela facilidade com que se trocavam etnias de personagens clássicos, e que o motivo para tal atitude era que a etnia branca de um colonizador abastado raramente acrescentava à cultura.

De fato, a troca de etnias normalmente ocorre em personagens que não têm diferenças históricas com base na etnia, como a Pequena Sereia de Halle Bailey. Os Di Grasso vão à casa de Italianos que provavelmente são parentes distantes esperando serem recebidos com abraços e beijos e são xingados e tocados para fora. Não há absolutamente nada neste núcleo que se conecte com as próprias raízes. Também não há muitos elementos culturais que façam com que ricos, brancos e homens se destaquem numa vivência de dia a dia.

O mundo é feito para servi-los, não há elementos de contracultura em seu dia a dia, nem lutas por reconhecimento, ou transmissão de uma cultura única. Dentro da lógica de acumulação de riquezas nem a própria ancestralidade sobrevive, em algum momento seus antepassados deram as costas para a Sicília e nunca mais sequer mantiveram contato.

Tanya, Greg e Portia e os gays trambiqueiros

Este triângulo totalmente instável passou por vários momentos distintos durante a série: Tanya tentando se relacionar com Greg (Jon Gries) e Portia (Haley Lu Richardson) de escanteio e depois Tanya se apoiando em Portia pela falta de Greg no ambiente. Greg dava sinais de problemas ao se manter distante todos os episódios em que apareceu. Tanya é extremamente devagar e teve pouco tato para notá-lo. Portia é uma trabalhadora explorada e talvez este ou vários motivos a fizeram ser uma pessoa rasa de sentimentos, desejos ou ambições.

(HBO/Reprodução)

As confusões que Tanya (brilhantemente interpretada por Jennifer Coolidge) se mete são hilárias e pontos altos do humor da série. A interação entre ela e Valentina na cena em que é chamada de Peppa Pig será provavelmente lembrada pelo público por muito tempo. Mas as questões que a personagem passa, são na verdade bastante tristes. Ela é inconstante em seus sentimentos, obcecada por algumas situações – na primeira temporada ficou obcecada pela massagem de Belinda até que Greg apareceu – e para piorar é rica.

As angústias de Tanya são imensas e se misturam com uma ansiedade e egoísmo da própria personagem. A personagem acaba numa derrocada de si mesma que culmina no assassinato de gays trambiqueiras que para conseguir acesso à sua fortuna apenas amaciaram seu ego. Seu egoísmo se torna deprimente, quando ela, após atirar em todos os gays de seu barco pergunta a Quentin (Tom Hollander) se Greg a traía.

O núcleo de gays trambiqueiras também é bastante rico em referências históricas, já que a Sicília floresceu sob a cultura romana, cheia de homoerotismos. No episódio 5, Quentin cita Gore Vidal, um escritor americano que viveu no pallazio em que se hospedaram. Este escritor viveu com outro homem naquele local, num relacionamento que segundo ele era estritamente platônico que durou 53 anos. Ele não se enquadrava como estritamente homossexual pois não gostava de rótulos.

(HBO/Reprodução)

Já Wilhelm Von Gloeden foi um fotógrafo alemão vivo durante o século 19. Suas imagens fizeram de Taormina um destino turístico para “homens refugiados de climas mais repressivos” (Edward Chaney). O lugar foi visitado por Oscar Wilde, André Gide, Tenesse Williams – todos bichas. Basicamente o programa conhece um pouco da história do lugar dá uma volta muito interessante na cultura LGBT, dando àquele point gay outra narrativa, mais contemporânea e aderente à história que querem contar.

Outra curiosidade bastante interessante é a relação de parentesco entre gays: em épocas que as relações homoafetivas eram proibidas por lei, a adoção de adultos se tornava uma válvula de escape para a aceitação de dois homens convivendo juntos sob o mesmo teto. E a relação de Jack e Quentin retorna a este ponto comum sob outra ótica: eles se passarem por tio e sobrinho mas desta vez para esconder seus planos de riqueza. Basicamente o criador da série Mike White fez mais que sua lição de casa.

Os moradores desta terra chamada Sicília

Lucia, Mia e Valentina têm menos destaque que os moradores das terras Havaianas da primeira temporada. Mesmo assim crescem e até florescem. Enquanto a maioria dos personagens ricos dão voltas em círculos e não ganham evoluções durante a série, nesta temporada Lucia e Mia ganham algo por suas atitudes durante os episódios.

(HBO/Reprodução)

E tudo parece ser bastante merecido, pois mesmo sob algumas atitudes moralmente questionáveis, elas são bastante claras em suas atitudes: utilizam do dinheiro de Dominic para esbanjar — como se fizesse alguma falta a ele —, flertam com todos da família por perceberem sua inclinação a qualquer rabo de saia, Lucia deixa seu desejo de cantar bastante claro à Valentina e seu sexo a concede vantagens.

Valentina (Sabrina Impacciatore) inclusive consagra os gerentes do White Lotus como LGBTs um pouco pirados, mas desta vez de maneira bem mais leve que Armond (Murray Bartlett) da 1ª Temporada. Ela deixa sua vida se tornar seu trabalho e acaba por não conhecer outras pessoas lésbicas em sua própria comunidade, deixando se apaixonar por sua funcionária Isabella (Eleonora Romandini). Diferentemente também da 1ª temporada, apesar dela ter a força e o poder para assediar sua funcionária no trabalho, volta ao bom senso e desiste de seu platonismo. Sua jornada é bem mais leve, o que não a deixa menos interessante.

(HBO/Reprodução)

Bravo, bravissimo

O conjunto da obra, atuações, referências históricas, utilização da paisagem e estudos sobre as vidas dos ricos fazem de The White Lotus uma merecedora de seu sucesso. O tratamento da trama não é criado do dia para a noite e explora formidavelmente cada um de seus núcleos, fazendo com que os reconheçamos em nós mesmos ou em pessoas ao nosso redor.

O roteiro é dinâmico e de grande perspicácia. Suas alterações entre bom humor e cliffhangers são o ápice da série. Espero para próximas temporadas mais dessa exploração dos ambientes que podem servir de cenário à outras sedes do resort White Lotus e uma exploração diferente da vida dos ricos sob questões que acredito que possam aparecer como tema de temporadas como crise ambiental, racismo ou LGBTfobia.

The White Lotus
The White Lotus
Mike White
David Bernad, Mark Kamine, Mike White, Ute Leonhardt, Marco Valerio Pugini
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Nota: 5

Nota: 5
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Estudante de Cinema e Audiovisual em formação, "sériéfilo" por consequência, entusiasta de efeitos visuais e crente no poder de transformação social através das artes.